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Livro Primeiro: Natureza e excelência da virtude do abandono

 
CAPÍTULO I
Deus fala, ainda hoje, como falava a nossos pais, quando não havia diretores nem métodos. A fidelidade à vontade de Deus era toda a espiritualidade; mas esta não se encontrava posta em arte que a explicasse de maneira tão sublime e tão pormenorizada, com tantos preceitos, tantas instruções e tantas máximas. As necessidades presentes exigem-no, sem dúvida; mas não era assim noutros tempos, em que havia mais retidão e simplicidade. Sabia-se que em cada momento temos um dever a cumprir com fidelidade, e isto bastava aos homens de então. Nele se ia concentrando sucessivamente a sua atenção, como o ponteiro do relógio que vai marcando as horas, e em cada minuto aponta o espaço que deve percorrer. O seu espírito, movido sem cessar pelo impulso divino, encontrava-se insensivelmente voltado para o novo objeto que se lhes oferecia, segundo a disposição divina, em cada hora do dia.
Tais eram os segredos do proceder de Maria, a mais simples das criaturas e a mais entregue a Deus. A resposta que deu ao Anjo, quando se limitou a dizer-lhe: Faça-se em mim segundo a tua palavra, continha toda a teologia mística dos seus antepassados. Tudo aí se reduzia, como no presente, ao mais puro e ao mais singelo abandono da alma à vontade de Deus, qualquer que fosse a forma por que esta se apresentasse.
Tão digna e tão nobre disposição, que constituía todo o fundo da alma de Maria, brilha admiravelmente nessa palavra tão simples: Fiat mihi. Notemos que ela está perfeitamente de acordo com a que Nosso Senhor deseja que nós tẹnhamos, sem cessar, nos lábios e no coração: Fiat voluntas tua. É certo que aquilo que se exigia a Maria nesse momento de tamanha transcendência, era gloriosíssimo para ela. Mas não se deixaria deslumbrar por todo o brilho dessa glória, se a vontade de Deus, o único objeto capaz de a impressionar, não tivesse detido o seu olhar.
Essa divina vontade é que a regia em tudo. Quer as suas ocupações fossem comuns ou elevadas, a seus olhos eram somente sombras, escuras umas vezes outras vezes resplandecentes, nas quais encontrava matéria para glorificar a Deus e reconhecer as obras do Todo Poderoso. O seu espírito, transportado de alegria, considerava tudo o que tinha de fazer ou de sofrer em cada momento, como um dom d’Aquele que sacia de bens os corações que só d’Ele se alimentam e não das espécies ou aparências criadas.
 
CAPÍTULO II
A virtude do Altíssimo cobrir-te-á com a sua sombra, disse o Anjo a Maria. Esta sombra, na qual se esconde a virtude de Deus para gerar Jesus Cristo nas almas, é o que cada momento traz em si de deveres, de gozos ou de cruz.
Com efeito, estes são apenas sombras à maneira daquelas a que damos este nome na ordem da natureza, e que se estendem sobre os objetos sensíveis como um véu que no-los encobre. Assim na ordem moral e sobrenatural, os deveres de cada momento, sob as suas obscuras aparências, encobrem a verdade da vontade divina, a única a merecer a nossa atenção. Assim as olhava Maria. E por isso essas sombras deslizando sobre as suas faculdades, longe de a perturbarem, alimentavam a sua fé d'Aquele que é sempre o mesmo. Retirai-vos, ó Arcanjo, vós sois uma sombra; o vosso momento voa e vós desapareceis. Maria ultrapassa-vos, vai avançando sempre; já vos encontrais longe dela; mas o Espírito Santo que dela se apoderou através desta missão sensível, jamais a abandonará.
Há poucos rasgos extraordinários na vida exterior da Virgem Santíssima. Pelo menos a Sagrada Escritura não no-los faz notar. A vida de Maria apresenta-se-nos muito simples e comum, quanto ao exterior. Faz e sofre o que fazem e sofrem as pessoas da sua condição. Vai visitar sua prima Santa Isabel, como vão também os outros parentes. Recolhe-se a um estábulo; é uma consequência da sua pobreza. Volta a Nazaré, de onde a perseguição de Herodes a havia afastado; Jesus e José aí viviam com ela do seu trabalho. Tal era para a Sagrada Família o pão de cada dia.
Mas de que pão se alimenta a fé de Maria e de José? Qual é o sacramento de todos os seus momentos sagrados? Que descobrem debaixo da aparência dos acontecimentos que vão enchendo esses momentos? O que neles há de visível é semelhante ao que sucede ao resto dos homens; mas o invisível, o que a fé aí entrevê e descobre, é nada menos que Deus realizando grandes coisas. O pão dos Anjos, ó maná celeste, pérola evangélica, sacramento do momento presente! A quem é que tu o dás? Esurientes reples bonis! Enches de bens os que têm fome de Deus. E Deus revela-se aos pequenos e aos humildes, ainda nas coisas mais pequenas; mas os grandes e soberbos, que não consideram senão as aparências, esses não O descobrem nem mesmo nas coisas grandes.
 
CAPÍTULO III
Se a obra da nossa santificação nos oferece dificuldades tão insuperáveis na aparência, é porque não temos dela uma ideia exata. De fato, a santidade reduz-se toda a uma só coisa - a fidelidade à vontade de Deus. Ora esta fidelidade está ao alcance de todos, tanto na sua prática ativa como no seu exercício passivo.
A prática ativa da fidelidade consiste no cumprimento das obrigações que nos são impostas, quer pelas leis gerais de Deus e da Igreja, quer pelo estado particular que abraçamos. E o exercício passivo consiste na aceitação amorosa de tudo o que Deus nos envia a cada instante.
Destas duas partes da santidade, qual é a que está acima das nossas forças? Não é a fidelidade ativa, pois as obrigações que ela nos impõe cessam de ser obrigações desde que o seu cumprimento exceda realmente as nossas forças. O estado de saúde em que vos encontrais não vos permite ir assistir à missa? Não estais obrigados a ouvi-la. E o mesmo se diga de todas as obrigações positivas, isto é, daquelas que nos prescrevem o cumprimento de algum ato. Só as que nos proíbem de fazer coisas que são más em si mesmas, é que não sofrem exceção alguma, pois nunca é permitido fazer o mal.
Haverá portanto coisa mais fácil e mais razoável?... Que desculpa é que poderemos alegar?... Ora é precisamente isso o que Deus exige da alma, no trabalho da sua santificação. Exige-o aos grandes e aos pequenos, aos fortes e aos fracos: numa palavra, a todos, em todo o tempo e em todo o lugar. Por conseguinte, é muito verdade que não exige da nossa parte senão o que é possível e fácil, pois basta possuir este fundo tão simples, para chegar a uma santidade muito elevada.
Se para além dos mandamentos nos aponta os conselhos, como alvo mais perfeito para o qual havemos de tender, tem contudo o cuidado de acomodar a prática desses conselhos à nossa situação e ao nosso caráter. Como sinal principal da nossa vocação para os seguir, dá-nos os auxílios da graça que nos facilitam a sua prática. Nem chama a ninguém senão na medida das suas forças e no sentido das suas aptidões. Mais uma vez ainda: poderia imaginar-se alguma coisa mais razoável?
Ó vós todos que tendeis à perfeição e vos sentis tentados de desânimo à vista do que ledes nas vidas dos santos e do que certos livros de piedade vos prescrevem; ó almas que vos afligis a vós mesmas com as ideias terríveis que tendes da perfeição; é para vossa consolação que Deus quer que eu escreva estas palavras.
Aprendei pois o que pareceis ignorar. Este Deus de bondade tornou fáceis de adquirir todas as coisas necessárias e comuns na ordem natural, como o ar, a água e a terra. Nada mais necessário do que a respiração, o sono e o alimento; mas nada também mais fácil. O amor e a fidelidade não são menos necessários na ordem sobrenatural; por isso a dificuldade em os alcançar não deve ser tão grande como no-la representamos.
Reparai na nossa vida. De que é que se compõe? De uma série de ações de bem pouca monta. Ora destas coisas de tão mesquinha importância é que Deus se digna contentar-se. Essa é a parte que toca à alma no trabalho da perfeição. E para que não pudéssemos ter disso dúvida, quis explicar-no-lo bem claramente: “Temei a Deus e observai os seus mandamentos; isso é convosco”. Quer dizer: eis tudo o que o homem deve fazer pela sua parte, eis em que consiste a sua fidelidade ativa. Cumpra o homem o que lhe toca, e Deus fará o resto. A graça divina reserva para si mesma a realização de maravilhas que ultrapassam toda a inteligência do homem. Porque nem os ouvidos ouviram, nem os olhos viram, nem o coração sentiu o que Deus concebe na sua ideia, resolve na sua vontade e executa pelo seu poder, nas almas que a Ele se abandonam.
A parte passiva da santidade é ainda muito mais fácil, pois não consiste se não em aceitar o que na grande maioria dos casos não se pode evitar; e em sofrer com amor, isto é, com suavidade e consolação, o que tantas vezes se suporta com aborrecimento e desgosto.
Mais uma vez ainda: eis a santidade toda inteira. Eis o grão de mostarda, cujos frutos não recolhemos porque não sabemos reconhecê-lo na sua insignificância. Eis a dracma do Evangelho, o tesouro que não encontramos porque o supomos muito afastado para o ir buscar.
Nem me pergunteis qual é o segredo de encontrar este tesouro. Porque verdadeiramente não há segredo. Este tesouro está em toda a parte, e a todos se oferece em todo o lugar e em todo o tempo. As criaturas amigas e inimigas dão-no-lo a mãos cheias e fazem-no correr pelas faculdades do nosso corpo e alma, até ao mais fundo do nosso coração. Basta abrir a boca, e ficará repleta.
A ação divina inunda o universo, penetra todas as criaturas, sobrenada acima de todas, está em toda a parte onde elas estão; adianta-se a elas, acompanha-as, segue-as; não temos senão que deixar-nos levar pelas suas ondas.
Prouvera a Deus que os reis e seus ministros, os príncipes da Igreja e do mundo, os sacerdotes, os soldados, os patrões e os operários, numa palavra todos os homens, conhecessem quanto é fácil atingir uma santidade eminente. Para eles não se trata senão de cumprir os simples deveres do cristianismo e do seu estado, e abraçar com submissão as cruzes que lhes estão inerentes, e submeter-se com fé e amor à vontade da Providência, em tudo o que se lhes apresenta para fazer ou sofrer, sem mesmo o buscarem.
Esta espiritualidade foi a que santificou os profetas, muito antes de que houvesse tantas regras e tantos mestres. É a espiritualidade de todas as idades e de todos os estados, que certamente não podem ser santificados de maneira mais elevada, mais extraordinária e mais ao nosso alcance, do que realizando simplesmente o que Deus, soberano diretor das almas, lhes dá em cada momento a fazer ou sofrer.
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CAPÍTULO IV
A ordem de Deus, o beneplácito de Deus, a vontade de Deus, a ação de Deus, a graça, tudo isto, é uma e a mesma coisa nesta vida. É Deus trabalhando para tornar a alma semelhante a si mesmo. A perfeição não é outra coisa senão a cooperação fiel da alma a um trabalho de Deus. A graça produz-se em nossas almas, cresce, aumenta e tem a sua consumação em segredo e sem que a alma se dê conta.
A teologia está cheia de conceitos e expressões que explicam as maravilhas da graça em cada alma, em toda a sua extensão. Pode conhecer-se tudo o que esta especulação ensina, falar dela admiravelmente, escrever, instruir, dirigir as almas: porém quem não tiver no espírito senão este conhecimento teórico é, para as almas que recebem o termo da ordem de Deus e da sua divina vontade, como se não soubesse toda a teoria com todas as suas partes e não pudesse falar dela.
A ordem de Deus, a sua divina vontade, recebida com simplicidade por uma alma fiel, realiza nela esse efeito divino, sem que ela o conheça; como um remédio tomado com submissão opera a saúde num doente que não sabe nem tem que se preocupar de saber medicina. Assim como o fogo é que produz o calor e não a filosofia nem o conhecimento deste elemento e dos seus efeitos, assim também é a ordem de Deus, é a sua santíssima vontade que opera a santidade nas nossas almas, e não a especulação curiosa deste princípio e deste objetivo.
Quando temos sede, para nos dessedentarmos o que devemos fazer é deixar os livros que explicam estas coisas, e beber. A curiosidade de saber não é capaz de dessedentar. Assim, quando a alma tem sede de santidade, a curiosidade de saber não é capaz senão de a afastar. Deve-se deixar de lado a especulação, e beber com simplicidade tudo o que a ordem de Deus nos apresenta de ações e sofrimentos. O que nos sucede em cada momento, por ordem de Deus, é o que há de mais santo, de melhor, e de mais divino para nós.
 
CAPÍTULO V
Toda a nossa ciência consiste em conhecer esta ordem do momento presente. Toda a leitura que se faz sem ser pela ordem de Deus, é prejudicial; é a vontade de Deus e a sua ordem que é graça e opera no fundo dos nossos corações, pelas nossas leituras como por todas as nossas boas obras. Sem ela, as leituras são apenas espécies ou aparências vãs, que destituídas a nosso respeito da virtude vivificante da ordem de Deus, não servem senão para deixar vazio o coração, precisamente pela plenitude que causam ao espírito.
Esta divina vontade penetrando na alma de uma jovem ignorante, por meio de alguns sofrimentos ou de quaisquer outras ações vulgares, opera no mais íntimo do seu coração esse termo misterioso do ser sobrenatural, sem contudo encher o seu espírito de qualquer ideia capaz de a ensoberbecer; ao passo que o homem orgulhoso que estuda os livros espirituais levado somente da curiosidade, sem a vontade de Deus estar unida à sua leitura, não recebe senão a letra morta, sem o espírito que a vivifica, e vai-se tornando cada vez mais árido e seco.
A ordem de Deus, a sua divina vontade é a vida da alma, de qualquer modo que a alma a receba ou aplique a si mesma. Qualquer que seja a relação que esta divina vontade tenha para com o espírito, alimenta a alma e a faz crescer continuamente, dando-lhe o que há de melhor em cada momento. O que produz tão divinos efeitos não é isto nem aquilo, mas o que pertence à ordem de Deus no momento atual. O que era o melhor no momento passado, já não o é, por não estar informado pela vontade de Deus, a qual se nos vai apresentando sob outras aparências, para fazer nascer a obrigação do momento presente; e esta obrigação, qualquer que seja a aparência que ela tome, é o que presentemente há de mais santificante para as nossas almas.
Se neste momento a divina vontade nos manda ler, a leitura realiza no fundo da alma esse efeito misterioso. Se a divina vontade nos manda deixar a leitura por um dever de contemplação atual, este dever opera no fundo do coração o homem novo, e a leitura seria então prejudicial e inútil. Se a divina vontade retira a alma da contemplação atual, para aplicá-la a uma ocupação exterior mesmo durante consideráveis espaços de tempo, o novo dever forma Jesus Cristo no fundo do coração, e toda a doçura da contemplação serviria apenas para o destruir.
A ordem de Deus é a plenitude de todos os nossos momentos. Vai revestindo mil aparências diferentes, as quais tornando-se sucessivamente o nosso dever atual, formam, fazem crescer e consumam em nós o homem novo, até à plenitude que a divina sabedoria nos destinou. Este misterioso crescimento da idade de Jesus Cristo nos nossos corações é o termo produzido pela ordem de Deus: é o fruto da sua graça e da sua divina vontade.
Este fruto, como dissemos, produz-se, cresce e alimenta-se pela sucessão dos nossos deveres presentes, que a própria vontade de Deus preenche. Cumprindo estes deveres, estamos sempre seguros de possuir a melhor parte; porque esta vontade santa é precisamente a melhor parte. Não há senão que deixá-la agir e abandonar-se cegamente, com uma confiança perfeita, à sua ação. Ela é infinitamente sábia, infinitamente poderosa, infinitamente benéfica para todas as almas que nela esperam totalmente e sem reserva, que só a ela amam e buscam, e crêem com uma fé e com uma confiança inabalável que o melhor é o que ela faz em cada momento, sem buscar noutra parte o mais ou o menos, e sem se deter a considerar as relações que tudo o que é material tem com a ordem de Deus: o que não é senão um verdadeiro amor próprio buscando-se a si mesmo.
A vontade de Deus é o essencial, o real e a virtude de todas as coisas; ela é que as ajusta e as acomoda à alma; sem ela tudo é vão, tudo é nada, mentira, vaidade, letra, aparência exterior e morte. A vontade de Deus é a salvação da alma, qualquer que seja a aparência sob que se apresente o assunto a que se aplica.
Portanto não se deve olhar para as relações que as coisas têm com o espírito e com o corpo, para julgar da sua virtude, pois essas relações são de reduzida importância. A vontade de Deus é que dá às coisas, sejam elas quais forem, a eficácia para formar Jesus Cristo no fundo dos nossos corações. Portanto não se devem dar leis nem traçar limites a esta vontade, pois ela é onipotente.
Tenha o espírito as ideias que lhe aprouver, sinta o corpo aquilo que puder, mesmo que para o espírito não fossem senão distrações e perturbações e para o corpo doenças e mortes, sem embargo, esta divina vontade é sempre, para o momento presente, a vida do corpo e da alma; porque enfim, um e a outra, em qualquer estado que estejam, são por ela sempre sustentados e conservados. Sem ela, o pão é veneno; por ela, o veneno é remédio salutar. Os livros sem ela não fazem senão cegar, e por ela a perturbação torna-se luz. Ela é para todas as coisas, tudo o que nelas há de bondade e de verdade. Ela dá-nos Deus em tudo, e Deus é o ser infinito que tem o lugar de tudo na alma que o possui.
 
CAPÍTULO VI
O espírito, com tudo o que dele depende, quer ocupar o primeiro lugar entre os meios divinos; mas é necessário relegá-lo para o último lugar, como um escravo perigoso. O coração simples, se o sabe utilizar, pode alcançar no seu uso grandes vantagens; mas também pode prejudicar muito, se não está dominado. Quando a alma anela pelos meios criados, a ação divina diz ao coração que Ela lhe basta; quando em má hora a ela quer renunciar, a ação divina diz-lhe que se trata de instrumentos que por si mesmos não se devem abraçar nem rejeitar, mas que se devem receber dela e amoldar com simplicidade à ordem de Deus, usando de tudo como se não se usasse, estando privado de tudo como se nada lhe faltasse.
A ação divina, como plenitude que é sem limites, não pode apoderar-se duma alma senão enquanto essa alma está vazia de toda a confiança na sua própria ação, porque esta confiança é uma plenitude encoberta que exclui a ação divina.
O obstáculo mais próprio para deter é o que a alma encontra em si mesma; porque os obstáculos exteriores, esses sabe ela, quando lhe apraz, transformá-los em meios. Tudo lhe é igualmente próprio e tudo lhe é igualmente inútil. Sem ela, tudo é nada, e o nada é tudo por ela. Meditação, contemplação, orações vocais, silêncio interior, atos das potências, sensíveis ou distintos ou menos percebidos, retiro ou ação, sejam em si mesmos o que se quiser; o melhor de tudo isso para a alma é o que Deus quer no momento presente; e tudo isso a alma deve olhar com uma perfeita indiferença, como não sendo absolutamente nada.
Assim, não vendo senão a Deus em todas as coisas, deve tomá-las e deixá-las todas ao divino arbítrio, para não viver nem se alimentar, nem esperar senão na sua ordem, e não nas coisas que só por Ele têm força e virtude. A cada momento e a respeito de todas as coisas, deve dizer como o Apóstolo S. Paulo: “Senhor, que quereis que eu faça?” E não isto, nem aquilo, mas simplesmente: “tudo o que Vós quiserdes”. O espírito prefere isto, o corpo aquilo; mas eu, Senhor, não desejo se não a vossa santíssima vontade. Ação, contemplação, oração vocal ou mental, em atos ou em silêncio, em fé ou em luz, em distinção de espécies ou em graça geral: tudo isso, ó meu Deus, nada é, porque só a vossa vontade é que a tudo isso comunica virtude. Só ela é o ponto central da minha devoção, e não as outras coisas, por mais elevadas e sublimes que sejam, porque a perfeição do coração e não a do espírito é que é o termo da graça.
A presença de Deus que santifica as nossas almas é essa habitação da Santíssima Trindade que penetra no íntimo dos nossos corações, quando eles se submetem à divina vontade: porque a presença de Deus, que se faz pelo ato de contemplação, não opera em nós essa união íntima senão como as outras coisas que são da ordem de Deus. Portanto, ocupa o primeiro lugar entre elas, porque é o meio excelente de união a Deus, quando a divina vontade ordena que se lance mão dela.
Na estima e no amor que temos à contemplação e aos outros exercícios de piedade, nada há que não seja legítimo, contanto que essa estima e esse amor se eleve totalmente ao Deus infinitamente bom, que se digna de servir-se desses meios para dar-se às nossas almas.
Recebemos a um príncipe, recebendo o seu séquito. E seria fazer-lhe injúria não demonstrar afeto algum aos seus oficiais, sob pretexto de o possuir só a ele.
 
CAPÍTULO VII
A alma que não adere exclusivamente à vontade de Deus, não encontrará nem satisfação nem santificação nos mais diversos meios e nos diversos exercícios de que possa lançar mão, por mais excelentes que eles sejam.
Se o que o próprio Deus escolhe para vós não vos satisfaz, que outra mão que não seja a Sua poderá servir-vos à medida dos vossos desejos? Se mostrais desagrado do alimento que a própria vontade divina vos preparou, que outro manjar não será insípido a um paladar tão estragado?
Uma alma não pode verdadeiramente ser alimentada, fortalecida, purificada, enriquecida e santificada, senão por esta plenitude do momento presente. Que mais queres, portanto? Se nele encontras todos os bens, porque buscá-los noutra parte? Ou que tu entendes as coisas melhor do que Deus? Se Ele ordena que sejam assim, como desejar que fossem de outro modo? Porventura se engana a sua divina sabedoria e a sua divina bondade? E se a bondade e sabedoria de Deus dispõem uma coisa, não deves estar plenamente convencido de que é excelente? Ou é que pensas encontrar a paz, pondo-te em luta com o Onipotente? Pelo contrário, não é verdade que esta luta que tantas vezes renovamos, sem quase o confessarmos a nós mesmos, é a verdadeira causa de todas as nossas agitações?
Com efeito, é justo que a alma que se não encontra satisfeita pela plenitude divina do momento presente, seja castigada com a incapacidade de encontrar contentamento em qualquer outra coisa. Se os livros, os exemplos dos santos e os tratados espirituais privam da paz; se enchem mas não saciam, é sinal de que nos desviamos do puro abandono à ação divina e a enchemos dessas coisas como se lhe pertencessem. A sua plenitude, nesse caso, fecha a entrada a Deus, e é preciso despojar-se dela como de um obstáculo à graça.
Mas quando a ação divina ordena essas coisas, a alma recebe-as como o resto, isto é, como ordem de Deus. Deixa-as tais quais são, não tomando delas senão simplesmente o uso, para se manter fiel; e desde que a hora dos pensamentos passou, abandona-os para se contentar com o momento seguinte. É que de fato, nada há de bom para mim, a não ser a ação emanada da ordem de Deus. Nem posso encontrar noutra parte meio algum, por melhor que seja em si mesmo, mais apropriado para a minha santificação e mais apto para me dar a paz.
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CAPÍTULO VIII
A ordem de Deus confere a todas as coisas, a respeito da alma que com ela se conforma, um valor sobrenatural e divino. Tudo o que essa ordem prescreve, tudo o que contém, todos os objetos aos quais ela se estende, tornam-se perfeição e santidade, porque a sua virtude não tem limites e diviniza todas as coisas em que toca.
Mas para não se desviar nem para a direita nem para a esquerda, a alma precisa de não seguir inspiração alguma que julgue recebida de Deus, antes de se ter certificado de que essa inspiração não se afasta dos deveres do seu estado. Estes deveres são a manifestação mais certa da ordem de Deus, e nada lhes deve ser anteposto; neste ponto nada há a temer, nada a excluir nem distinguir. Os momentos consagrados ao cumprimento dos próprios deveres são para a alma os mais preciosos e os mais salutares, por isso mesmo que lhe dão a segurança indubitável de que se conforma com o beneplácito de Deus.
Toda a virtude do que se chama santo reside nesta ordem de Deus; e assim nada se deve rejeitar sem procurar conhecê-la, mas antes abraçar tudo o que venha da sua parte, e nada sem ela. Os livros, os conselhos dos sábios, as orações vocais, os afetos interiores, se a ordem de Deus os prescreve, tudo isso instrui, tudo dirige e une. Erra o quietismo, ao desdenhar esses meios e tudo o que é sensível, porque há almas que Deus quer fazer seguir sempre por esse caminho, o qual os seus estados e as suas inclinações traçam claramente. Em vão se imaginam outras formas de abandono das quais esteja excluída toda a atividade própria; quando a ordem divina é que move a alma, está em ação a santidade.
Além dos deveres impostos a cada um pelo próprio estado, Deus pode ainda pedir certas ações que não estão contidas nesses deveres, conquanto não lhe sejam opostas. A inclinação e a inspiração são nesse caso o sinal da ordem divina; e o mais perfeito para as almas que Deus assim conduz é ajuntar às coisas prescritas as coisas inspiradas, mas com as precauções que a inspiração exige para não lesar os deveres de estado nem as coisas de pura Providência.
Deus forma os santos como bem lhe apraz; a sua ordem é que os faz a todos e todos devem ser sujeitos a esta ordem; esta sujeição é o verdadeiro abandono, é o que há de mais perfeito.
O cumprimento dos deveres de estado e a aceitação das disposições da Providência é o patrimônio comum de todos os santos. Vivem escondidos na obscuridade, para evitar os funestos escolhos do mundo; mas não é nisso que fazem consistir a própria santidade, a qual toda se resume na submissão à ordem de Deus. Quanto mais esta submissão se torna absoluta, tanto mais eles se santificam. Não se deve pensar que aqueles em quem Deus faz brilhar as virtudes por meio de ações singulares e extraordinárias, por inclinações e inspirações não suspeitas, vão por isso menos pelo caminho do abandono. Uma vez que a ordem de Deus lhes impõe como um dever estas obras esplendorosas, eles não se abandonariam a Deus e à sua santíssima vontade, e esta não seria neles a senhora de todos os seus momentos e todos os seus momentos não seriam vontade de Deus, se se contentassem com os deveres do próprio estado e com as coisas de pura Providência. Têm de estender-se e medir-se pela extensão dos desígnios de Deus neste caminho que lhes é assinalado pela inclinação. A inspiração deve ser para eles um dever, ao qual têm de permanecer fiéis. E como há almas cujo dever é totalmente marcado por uma lei exterior, em que se devem encerrar porque a ordem de Deus as encerra nele, é necessário que as outras, além do dever exterior sejam também fiéis a essa lei interior que o Espírito Santo lhes grava no coração.
Mas quem são os mais santos? Querer sabê-lo é curiosidade vã. Cada um de nós deve seguir o caminho que lhe foi traçado. A perfeição consiste em submeter-se à ordem de Deus e em nada deixar escapar do que nela se encontra de mais perfeito. A comparação dos diversos estados considerados em si mesmos não nos ajuda nada a adiantar no caminho da perfeição, pois não é na quantidade nem na qualidade das coisas previstas, que se deve buscar a santidade. Se o amor próprio é o princípio das nossas ações, ou se não é retificado quando nos damos conta das suas investigações e curiosidades, seremos sempre pobres numa abundância que não é repleta pela ordem de Deus. Contudo, para de algum modo decidir a questão, penso que a santidade corresponde ao amor que temos ao beneplácito de Deus; e que quanto mais esta vontade e esta ordem forem amadas, seja qual for a ação material que elas prescrevem, tanto mais santidade haverá. E isto é o que vemos em Jesus, Maria e José, pois na sua vida particular há mais amor do que magnificência, e mais forma do que matéria; nem se escreve de pessoas tão santas, que tenham procurado a santidade das coisas, mas unicamente a santidade nas coisas.
Deve, portanto, concluir-se que não há caminho particular que seja o mais perfeito; mas que o mais perfeito, em geral, é a submissão à ordem de Deus, quer no cumprimento dos deveres exteriores quer nas disposições interiores.
Julgo que se as almas que tendem seriamente para a santidade fossem instruídas sobre este modo de proceder que devem observar, evitariam muitas dificuldades. E isto digo, quer das pessoas do mundo quer das que abraçaram a vida religiosa. Se as primeiras soubessem o mérito escondido no que em cada instante têm entre mãos, isto é, nas suas obrigações de cada dia, e nos deveres ordinários do próprio estado; se as segundas chegassem a persuadir-se que o fundo da santidade consiste nas coisas de que não fazem caso e que consideram mesmo como sendo-lhes estranhas; se estas duas classes de pessoas compreendessem que para se elevarem ao mais alto grau de perfeição, as cruzes providenciais que o próprio estado lhes proporciona a cada instante, lhes abrem um caminho bem mais seguro e mais breve do que os estados e as obras extraordinárias; e que a verdadeira pedra filosofal é a submissão à ordem de Deus, que transforma em ouro todas as suas ocupações, os seus desgostos e os seus sofrimentos, ó como seriam felizes. Quanta consolação e quanta coragem tirariam deste pensamento, que para abraçar a amizade de Deus e todas as glórias do céu, não têm que fazer mais nada do que fazem nem sofrer mais nada do que sofrem; e o que deixam perder e têm em conta de nada, bastaria para conseguir uma santidade eminente!
Quanto eu desejaria, ó meu Deus, ser o arauto desta santa vontade, e ensinar a toda a classe de pessoas que não há nada tão fácil, nem tão comum, nem que esteja tanto à mão de toda a gente, como a santidade. Ó como eu desejaria fazer compreender bem, que assim como o bom e o mau ladrão não tinham coisas diferentes que fazer ou sofrer para ser santos, assim duas almas, uma das quais é mundana e a outra toda interior e espiritual, não têm que fazer ou sofrer mais uma do que a outra. A que se santifica adquire a eterna felicidade, fazendo com submissão à vossa vontade, aquilo mesmo que faz por fantasia aquela que se condena; e esta última condena-se sofrendo com amargura e murmuração o que suporta com resignação aquela que se salva. O que é diferente, portanto, é só o coração.
Ó queridas almas que ledes estas palavras, olhai que não vos há-de custar mais fazer o que fazeis, sofrer o que sofreis; só tendes que mudar o coração.
E pelo coração entende-se a vontade. Esta mudança consiste, pois, em amar com a vontade aquilo que nos sucede por ordem de Deus. A santidade é simplesmente um fiat, uma disposição de vontade conforme à vontade de Deus; haverá coisa mais fácil? De facto, quem não pode amar uma vontade tão amável e tão boa? Amemo-la, pois; e este amor bastará para tudo em nós se tornar divino.
 
CAPÍTULO IX
Quem, pois, quer gozar da abundância de todos os bens, não tem senão que fazer uma coisa: purificar o coração, desapegar-se das criaturas e abandonar-se inteiramente a Deus. Nesta pureza e neste abandono encontrará todas as coisas. Senhor, peçam-vos, embora, os outros toda a espécie de dons, multipliquem as palavras e as orações; quanto a mim, ó meu Deus, não vos peço senão uma số coisa, não tenho senão esta petição a fazer-vos: Dai-me um coração puro! Ó coração puro como sois feliz. Pela viveza da vossa fé, vedes a Deus em si mesmo. Vede-Lo em todas as coisas e a todo o momento, agindo dentro e fora de vós. Em tudo lhe estais sujeito e em tudo se serve de vós. A maior parte das vezes não pensais nisso; mas pensa Ele por vós. O que por Sua ordem vos acontece e deve acontecer-vos, basta que vós o desejeis, pois ele conhece perfeitamente a disposição da vossa alma. Em vão procurais descobrir em vós este desejo e não o consegues. Mas Ele vê-o muito bem. Como sois demasiado simples! Acaso ignorais o que é um coração bem disposto? Não é outra coisa senão um coração onde Deus se encontra. Vendo nesse coração as suas próprias inclinações, Deus sabe muito bem que permanecerá sempre inteiramente submetido às suas ordens. Sabe, ao mesmo tempo, que vós não conheceis aquilo que vos é útil; e por isso toma o cuidado de vo-lo dar.
Que importa se vos contraria? Vós pensáveis ir para o oriente, Ele conduz-vos para o ocidente. Vós íeis direto contra os escolhos, Ele volta o leme e conduz-vos ao porto. Sem conhecimento nem de mapa nem de caminho, nem de vento nem de maré, as vossas viagens são sempre felizes. Se os piratas se aproximam de vós, um pé de vento inesperado leva-vos num instante para longe do seu alcance.
Ó boa vontade, ó coração puro! Como Jesus soube marcar o lugar que vos é próprio, ao colocar-vos entre os bem-aventurados. Que maior felicidade do que possuir a Deus e ser d'Ele reciprocamente possuído. Estado delicioso e cheio de encantos, em que a alma dorme sossegadamente, reclinada no seio da Providência; brincando, por assim dizer, inocentemente com a divina Sabedoria, sem preocupações a respeito da sua carreira, a qual não sofre interrupção de nenhum gênero e por entre cachopos e piratas e no meio de contínuas tempestades, vai decorrendo sempre com a maior felicidade do mundo!
Ó coração puro! Ó boa vontade! Vós sois o único fundamento de todos os estados espirituais! A vós é que foram dados e por vós é que à alma aproveitam os dons de pura fé, pura esperança, pura confiança e puro amor. No vosso tronco é que estão enxertadas as flores do deserto, isto é, as graças preciosas que não se vêem brilhar senão nessas almas inteiramente desprendidas, nas quais Deus, como em lugar não habitado, constitui a sua morada, com exclusão de qualquer outro objeto. Vós sois a fonte fecunda de onde partem todos os arroios que vêm regar os canteiros do esposo e o jardim da esposa. Vós tendes, com razão, o direito de dizer a todas as almas: “Fixai-vos bem em mim; eu é que produzo o belo amor, esse amor que sabe discernir o que há de melhor, para aí se fixar; eu é que faço nascer esse temor suave e eficaz, que produz o horror ao mal e o faz evitar sem perturbação; eu é que faço brotar esses conhecimentos belos e puros, que nos descobrem as grandezas de Deus e o valor da virtude que O honra; enfim, é de mim que se elevam os ardentes desejos, animados sem cessar por uma esperança a todas as luzes santa, que leva à prática constante do bem, esperando firmemente a posse desse divino obieto que um dia ha-de fazer, como agora, mas muito mais deliciosamente, a felicidade das almas fiéis”.
Vós podeis convidá-las todas a que venham a vós, para se enriquecerem dos vossos inesgotáveis tesouros. A vós remontam todos os estados e todos os caminhos do espírito. De vós haurem o que têm de belo, de atraente, de encantador; das vossas profundezas o tiram. Os frutos maravilhosos de graças e de virtudes de toda a espécie que neles se vêem brilhar de todas as partes, e de que a alma aí se alimenta, são produto dos vossos canteiros.
Eia pois, queridas almas, corramos, voemos a este mar de amor que chama por nós. Que esperamos? Ponhamo-nos a caminho sem demora; vamos perder-nos em Deus, no seu próprio Coração, para nos inebriarmos da sua caridade. Nesse Coração encontraremos a chave de todos os tesouros celestes. Tomemos depois o caminho do céu. Não haverá lugar, por mais secreto, onde não possamos penetrar; nada estará fechado para nós: nem o jardim, nem a dispensa, nem a vinha. Se pretendermos respirar o ar do campo, de nós dependerá dirigir para aí os nossos passos. Enfim, iremos e viremos, entraremos e ficaremos, a nosso bel prazer, com esta chave de Davi, esta chave da ciência, esta chave do abismo em cujas profundezas se encontram escondidos todos os tesouros ocultos da Sabedoria divina.
Com esta chave divina se abrem as portas da morte mística e das suas trevas sagradas; por meio dela se desce aos lagos profundos e à caverna dos leões. Ela é que nos introduz nessa feliz mansão da inteligência e da luz, onde o Esposo descansa respirando o ar fresco do meio dia e revela às suas fiéis esposas os segredos do seu amor. Ó divinos segredos que não é permitido revelar e que lábios mortais não são capazes de exprimir.
Amemos, pois, ó almas queridas! É pelo amor que esperam todos os bens, para nos enriquecer. O amor dá a santidade e tudo o que a acompanha; está ao seu lado direito e ao seu lado esquerdo, para de todas as partes a fazer descer aos corações abertos a todas as efusões divinas. Ó divina semente de eternidade! Nunca seremos capazes de vos exaltar quanto devemos. Mas para que falar tanto de vós? Mais vale possuir-vos em silêncio do que louvar-vos com simples palavras. Mas que digo? Devemos louvar-nos, porém não o poderemos fazer senão na medida em que estivermos possuídos de vós. Porque em vós tomando posse dum coração, o ler, escrever, falar ou agir ou fazer o contrário, é para ele uma e a mesma coisa. Nada se busca e nada se rejeita; vive-se na solidão ou exerce-se o apostolado; goza-se de saúde ou sofre-se de doença; há simplicidade ou eloquência; numa palavra somos o que vós quiserdes que sejamos. O que vós sugeris ao coração, o coração como eco fiel repete-o às outras faculdades.
Neste composto material e espiritual que vós bondosamente considerais como vosso reino, é o coração que sob os vossos auspícios, reina e domina como senhor; e como não tem outros instintos senão os que vós lhe inspirais, todos os objetos lhe agradam sob o aspecto que lhos ofereceis. Os que a natureza ou o inimigo quereriam substituir em lugar deles, não servem senão para causar-lhe repulsa e horror; e se vós permitis que por vezes se encontre surpreendido neles, é unicamente para o fazer mais prudente e mais humilde; mas logo que reconhece a ilusão de que foi vítima, torna a vós com mais amor e une-se a vós com mais fidelidade.
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Livro Segundo: Da ação Divina e da maneira como ela trabalha sem cessar na santificação da alma

 
CAPÍTULO I
Na mão de Deus todas as criaturas estão vivas; os sentidos não percebem senão a ação da criatura, mas a fé vê em tudo a ação divina. Ela crê que Jesus Cristo vive em tudo e opera em toda a extensão dos séculos; que o menor momento e o mais pequeno átomo encerram uma porção dessa vida escondida e dessa ação misteriosa. A ação das criaturas é um véu que cobre os profundos mistérios da ação divina. Jesus Cristo, depois da ressurreição, surpreende os discípulos com as suas aparições; apresentava-se-lhes sob figuras que o encobriam; e logo que se manifestava, desaparecia. Este mesmo Jesus, que está vivo e sempre operante, surpreende ainda as almas que não têm a fé bastante esclarecida.
Não há momento nenhum em que Deus não se apresente, sob a aparência de alguma obrigação ou de algum dever. Tudo o que se realiza em nós, ao redor de nós, e por nós, encerra e cobre a sua ação divina que está presente dum modo real e certíssimo, mas com uma presença invisível; donde resulta que somos sempre surpreendidos e não conhecemos a sua operação senão quando ela já não subsiste.
Se nós rasgássemos o véu e estivéssemos vigilantes e atentos, Deus revelar-se-nos-ia sem cessar e gozaríamos da sua ação em tudo o que nos acontece. Em cada coisa diríamos: Dominus est! é o Senhor! e verificaríamos em todas as circunstâncias, que recebemos um dom de Deus; consideraríamos as criaturas como fracos instrumentos nas mãos dum artífice todo poderoso, e sem dificuldade reconheceríamos que nada nos falta, e que o cuidado contínuo de Deus O leva a distribuir-nos, a cada instante o que nos convém. Se tivéssemos fé, sentir-nos-íamos agradecidos a todas as criaturas; acariciá-las-íamos e estar-lhes-íamos reconhecidos no nosso interior, por nos servirem e se tornarem tão favoráveis à nossa perfeição, aplicada pela mão de Deus.
Se vivêssemos, sem interrupção, da vida da fé, estaríamos em um contínuo trato com Deus; falar-lhe-íamos face a face. O que é o ar para transmitir os nossos pensamentos e as nossas palavras, seria para as de Deus tudo o que nos acontece de fazer ou sofrer; seria o corpo de sua palavra, que em tudo se nos representaria no exterior; tudo para nós seria santo, tudo nos seria excelente. A glória estabelece um tal estado no céu; a fé estabelecê-lo-ia sobre a terra. A diferença não seria senão no modo de o realizar.
A fé é o intérprete de Deus. Sem os esclarecimentos que ela dá, não entendemos nada da linguagem das criaturas. É uma escrita em cifra, um aglomerado de números, onde só vemos confusão; é um montão de espinhos, do meio dos quais não supomos que Deus possa falar. Mas a fé mostra-nos como fazia a Moisés, o fogo da divina caridade ardendo no centro desses espinhos; dá-nos a chave desses números, e faz-nos descobrir nessa confusão as maravilhas da sabedoria do alto. A fé comunica a toda a terra uma face celeste; por ela é que o coração se sente transportado, arrebatado, para conversar no céu.
A fé é a luz do tempo, só ela atinge a verdade sem a ver; toca o que não sente; vê este mundo como se ele não existisse, vendo uma coisa muito diferente do que aparece. É a chave dos tesouros, a chave do abismo, a chave da ciência de Deus. A fé é que nos faz ver a verdadeira linguagem das criaturas; por ela é que Deus se revela e se manifesta em todas as coisas. Ela é que as diviniza, lhes tira o véu e descobre a verdade eterna.
Tudo o que nós vemos não é senão vaidade e mentira; a verdade das coisas está em Deus. Que diferença tão grande entre as ideias de Deus e as nossas ilusões. Como é que pode suceder que, estando continuamente a ser advertidos de que o que se passa no mundo não é senão uma sombra, uma figura, mistério de fé, contudo nós procedamos sempre conforme ao sentido natural e humano das coisas, que não é senão um enigma? Caímos na armadilha como insensatos, em vez de levantarmos os olhos e de nos remontarmos ao princípio, à fonte, à origem das coisas, onde tudo tem outro nome e outras qualidades; onde tudo é sobrenatural, divino, santificante, onde tudo participa da plenitude de Jesus Cristo; onde tudo é pedra da Jerusalém celeste, em que tudo entra e faz entrar nesse edifício maravilhoso. Vivemos guiados pelos sentidos, e tornamos inútil essa luz da fé, que nos guiaria tão seguramente no labirinto de tantas trevas e figuras, no meio das quais nos perdemos como insensatos. Pelo contrário, aquele a quem a fé serve de guia, nada quer senão a Deus e de Deus vive sempre, deixando para trás a figura e ultrapassando-a.
 
CAPÍTULO II
A alma iluminada pela fé está bem longe de julgar das coisas como aqueles que as medem pelos sentidos, ignorando o tesouro inestimável que elas encerram. O que sabe que uma pessoa disfarçada é o rei, procede de modo bem diferente quando ela chega, do que aquele que vendo a figura dum homem vulgar, o trata segundo a aparência exterior. Do mesmo modo a alma que vê a vontade de Deus nas mais pequeninas coisas, nas mais desoladoras e angustiantes, recebe tudo com igual alegria, com igual reverência e júbilo; o que outros temem e fogem com horror, honra-se ela de o receber, abrindo-lhe de par em par as portas do coração. A bagagem é pequena, os sentidos desprezam-na; mas o coração, sob essa aparência vil, reverencia do mesmo modo a majestade real; e quanto mais ela se abate para vir em segredo e sem ruído, tanto mais o coração se sente penetrado de amor.
Não posso exprimir aqui o que sente o coração quando acolhe a divina vontade, tão pobre, tão abatida, tão diminuída. Oh como esta pobreza de Deus, este abatimento até habitar numa estrebaria, reclinado sobre um pouco de palha, chorando tremendo de frio, penetra no belo Coração de Maria! Interrogai os habitantes de Belém, vede o que pensam deste menino. Se ele estivesse num palácio, rodeado de fausto como um príncipe, não faltariam a lhe fazer corte. Mas perguntai a Maria, a José, aos Magos, aos pastores; e eles vos dirão que encontram nesta pobreza extrema uma coisa que não sabem definir mas pela qual Deus se lhes torna maior e mais amável. O que falta aos sentidos, realça-o, aumenta-o e enriquece-o a fé; quanto menos alimento há para os olhos, mais há para a alma.
Adorar a Jesus no Tabor, amar a vontade de Deus nas coisas extraordinárias, não é uma vida de fé em grau tão excelente como amar a vontade de Deus nas coisas comuns e adorar a Jesus sobre a Cruz; porque a fé não é excelentemente viva senão quando o aparente e o sensível a contradizem e se esforçam por destruí-la. Esta guerra dos sentidos torna a fé mais gloriosamente vitoriosa. Encontrar a Deus tão bom nas coisas mais pequenas e mais comuns como nas maiores, é ter uma fé invulgar, uma fé grande e extraordinária.
Contentar-se com o momento presente, é saborear e adorar a vontade divina em tudo o que temos de fazer e de sofrer, nas coisas que pela sua sucessão integram este momento atual. As

almas assim dispostas adoram a Deus com redobrado amor e reverência, nos estados mais humildes; nada O esconde ao olhar perspicaz da fé. Quanto mais os sentidos teimam em afirmar “aí não está Deus", tanto mais essas almas abraçam e estreitam ao coração o ramalhete de mirra; nada as afasta nem as desvia. Maria há de ver os Apóstolos abandonaram a Jesus; porém Ela permanecerá junto à cruz e reconhecerá o seu Filho, por mais que os escarros e as chagas o tenham desfigurado. Pelo contrário, essas chagas que O desfiguram tornam-no mais adorável e mais amável à ternura dos olhos da Mãe, e quanto mais blasfêmias vomitarem os algozes contra Ele, mais crescerá o seu amor e veneração.
A vida da fé não é senão uma busca incessante de Deus através de tudo aquilo que o esconde, o desfigura e por assim dizer o destrói e aniquila. É verdadeiramente uma reprodução da vida de Maria, que desde o presépio ao Calvário se conserva unida a um Deus desconhecido, abandonado e perseguido por todos. De igual maneira as almas de fé passam além duma série continuada de mortes, de véus, de sombras e de aparências, que teimam em tornar irreconhecível a vontade de Deus, a qual elas buscam e amam até à morte da cruz. Sabem perfeitamente que é preciso deixar continuamente as sombras, para correr após este divino sol que, desde o seu nascimento até ao seu ocaso, mesmo encoberto por escuras e densas nuvens, de contínuo ilumina, aquece e abrasa os corações fiéis que o bendizem, louvam e contemplam em todos os pontos desse misterioso percurso.
Correi, pois, ó almas fiéis, alegres e infatigáveis, após este querido Esposo que faz o seu caminho a passos de gigante, dum extremo ao outro do céu, sem nada se poder ocultar a seus olhos. Caminha por sobre as ervinhas do prado do mesmo modo que por cima dos cedros das florestas. Sob os seus passos estão os grãos de areia da praia, como os dorsos das montanhas. Por toda a parte já Ele pousou os seus pés; é segui-Lo sem desfalecer, com a certeza de o encontrar onde quer que vos acheis.
Ó que deliciosa paz desfruta a alma a quem a fé ensinou a ver assim a Deus através de todas as criaturas, como através de um véu diáfano.
Então as escuridões tornam-se luminosas, suaves as amarguras. A fé, mostra-nos as coisas na sua verdadeira luz, muda-lhes a feiúra em beleza e a malícia em bondade. A fé é a mãe da doçura, da confiança e da alegria; não pode usar senão de ternura e compaixão para com os seus inimigos, que tanto a enriquecem à própria custa. Quanto mais a ação da criatura é malévola, tanto mais a ação de Deus a torna proveitosa. Ao passo que o instrumento humano se esforça em prejudicar, o divino artífice, em cujas mãos está, serve-se dessa mesma malícia para desviar da alma aquilo que lhe pode fazer mal.
A vontade de Deus não tem senão doçuras, favores, tesouros, para as almas submissas; nunca será demais a confiança que ponhamos nela, nem a ela nos abandonaremos demasiadamente. Ela pode e quer sempre o que mais há de contribuir para a nossa perfeição, contanto que de nossa parte não ponhamos obstáculos à ação de Deus. A fé não duvida. Quanto mais os sentidos se mostram inseguros, revoltados, desesperados, tanto mais a fé nos diz: aí está Deus, tudo vai bem.
Não há coisa alguma que a fé não possa penetrar e dominar. Dissipa todas as trevas; e por mais esforço que as sombras façam, passa através delas, para chegar à verdade, abraça-a sempre com firmeza e jamais a abandona.
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CAPÍTULO III
Se nós soubermos considerar cada momento como a manifestação da vontade de Deus, aí encontraremos tudo o que o nosso coração pode desejar. Com efeito, que há de mais razoável, de mais perfeito, de mais divino, do que a vontade de Deus? O seu valor infinito pode porventura aumentar, com a diversidade de tempos, de lugares, de coisas? Dando-vos o segredo de a encontrar em tudo e a cada momento, tendes o que há de mais precioso e de mais digno dos vossos desejos. Que desejais, pois, almas santas? Dai livre curso ao vosso fervor, estendei os vossos desejos para além de toda a medida e de todo o limite: tenho com que o encher. Não há momento em que vos não faça encontrar tudo quanto podeis desejar.
O momento presente está sempre cheio de tesouros infinitos, excedendo em muito a vossa capacidade receptiva. A fé e o amor são a vossa medida; quanto o vosso coração mais ama, tanto mais deseja, e quanto mais deseja mais encontra. A vontade de Deus apresenta-se-lhe a cada instante como um mar imenso, impossível de esgotar e do qual não recebe senão na medida em que se dilata pela fé, pela confiança e pelo amor. Todas as coisas criadas não podem saciar o vosso coração, pois ele tem uma capacidade que vai muito além de tudo o que não é Deus. As montanhas que enchem de espanto os olhos, são apenas átomos no coração.
A vontade divina é um abismo que o momento presente nos abre: mergulhai nesse abismo e encontrá-lo-eis muito mais extenso do que os vossos desejos. Não aduleis ninguém; não adoreis fantasmas que nada vos podem dar nem tirar. Só a vontade de Deus será a vossa plenitude, sem deixar vazio algum; adorai-a, ide direto a ela, abandonando e ultrapassando todas as aparências. A morte dos sentidos, a sua destruição e o seu aniquilamento são o reino da fé. Os sentidos adoram as criaturas; a fé adora a vontade divina. Tirai os ídolos aos sentidos; choram como crianças desesperadas; mas a fé triunfa, porque não se lhe pode tirar a vontade de Deus. O momento que amedronta e aterroriza, reduz à fome, despoja e abate todos os sentidos, é o que alimenta, enriquece e vivifica a fé e se ri das perdas como o comandante duma fortaleza inexpugnável se ri dos ataques inúteis lançados pelo inimigo.
Quando a vontade de Deus se revela a uma alma, fazendo-lhe sentir que está disposta a dar-se-lhe toda inteira, contanto que a alma por sua vez se dê também a ela, esta experimenta em todas as ocasiões um socorro poderoso; então goza por experiência a felicidade desta vinda de Deus, e tanto mais goza quanto melhor compreende na prática o abandono em que deve estar a todos os momentos, para com esta adorabilíssima vontade.
 
CAPÍTULO IV
A palavra de Deus escrita é cheia de mistério; mas não o é menos a sua palavra realizada nos acontecimentos do mundo. Estes dois livros são verdadeiramente livros selados, e a letra de ambos mata. Deus é o centro da fé; é um abismo de trevas, que deste fundo se espalham sobre todas as produções que saem dele. Todas essas palavras, todas essas obras não são, por assim dizer, senão raios escuros dum sol mais escuro ainda. Em vão abrimos os olhos do corpo para ver esse sol e os seus raios; os olhos da nossa alma, pelos quais vemos a Deus e as suas obras, são olhos que se mantêm fechados. As trevas ocupam aqui o lugar da luz; o conhecimento é uma ignorância e vemos não vendo. A Sagrada Escritura é a linguagem misteriosa dum Deus ainda mais misterioso; os acontecimentos da história são palavras escuras desse mesmo Deus escondido e desconhecido. São gotas do mar, mas dum mar de trevas. Todas as gotas, todos os regatos trazem a marca da sua origem. A queda dos Anjos, a queda de Adão, a impiedade e idolatria dos homens, antes e depois do dilúvio, do tempo em que viviam os Patriarcas, que sabiam e contavam a seus filhos a história da criação e da conservação, ainda muito recente; eis outras tantas palavras bem escuras da Sagrada Escritura. Um punhado de homens preservados da idolatria na perda geral de todo o mundo, até à vinda do Messias; a impiedade sempre reinante, sempre poderosa; esse reduzido número de defensores da verdade, perseguidos sempre e maltratados; os atrozes tormentos infligidos a Jesus Cristo, as pragas do Apocalipse, são palavras misteriosas de Deus, que Ele mesmo revelou e Ele mesmo ditou! E os efeitos destes terríveis mistérios que continuam até ao fim dos séculos, são ainda a palavra viva que nos ensina a sua sabedoria, o seu poder, a sua bondade. Todos os acontecimentos que formam a história do mundo exprimem e glorificam estes diversos atributos. São porém uma coisa que se deve crer; não se vê.
Que quer Deus dizer, por meio dos hereges, dos cismáticos, de todos os inimigos da sua Igreja? Todos são uma proclamação esplendorosa; todos significam as infinitas perfeições. Faraó e quantos ímpios vieram após ele e virão até ao fim dos séculos não têm outro destino. Certamente, se abrirmos os olhos parecer-nos-á ver o contrário; mas temos de nos cegar e deixar de raciocinar, para nesses fatos reconhecer mistérios divinos.
Falais, Senhor, a todos os homens em geral, pelos acontecimentos universais. As revoluções não são todas senão como vagas da vossa Providência, que desencadeiam tempestades nos raciocínios da gente curiosa. Falais em particular a todos os homens, pelo que lhes sucede de momento a momento. Mas em lugar de ouvir nisso a vossa voz, de respeitar a vossa palavra obscura e cheia de mistério, somente se considera a matéria, o acaso, o humor dos homens. A tudo temos que dizer, querendo acrescentar, diminuir, reformar; toma-se uma liberdade completa de cometer excessos, o menor dos quais seria um atentado inaudito, se se tratasse duma só vírgula das Escrituras Sagradas. Estas porém respeitam-se, dizendo: é a palavra de Deus, tudo aí é santo, verdadeiro.
Se nada compreendemos, a nossa veneração é ainda maior; prestamos homenagem à profunda sabedoria de Deus. Tudo isso é bem justo. Mas o que Deus vos diz, caras almas, as palavras que pronuncia, momento após momento, que têm como corpo não a tinta e o papel, mas o que vós sofreis, o que vós tendes a fazer de um momento ao outro, não merecerão nada da vossa parte? Por que não respeitais em tudo a verdade e a vontade de Deus? Não há nada que vos não desagrade; censurais tudo. Não reparais que medis pelos sentidos o que não se pode medir senão pela fé? E que lendo com os olhos da fé a palavra de Deus na Sagrada Escritura, procedeis de modo completamente errado se ledes com outros olhos as suas realizações?
 
CAPÍTULO V
“Jesus Cristo, diz o Apóstolo, era ontem, é hoje e será até ao fim dos séculos”. Desde a origem do mundo, era como Deus o princípio da vida das almas justas; a sua humanidade, desde o primeiro instante da Encarnação, participou desta prerrogativa da sua divindade. Opera em nós todo o tempo da nossa vida: o tempo que há de decorrer até ao fim do mundo não é mais do que um dia, e este dia é um dia cheio de Jesus. Jesus Cristo viveu e vive ainda; começou em si mesmo e continua nos seus santos uma vida que não acabará nunca.
Ó vida de Jesus que se estende e sobreleva a todos os séculos; vida que em cada momento vai realizando novas atividades. Se o mundo todo não é capaz de compreender tudo o que se poderia escrever da vida de Jesus, do que fez e do que disse sobre a terra; se o evangelho não nos deixa senão alguns pequenos traços dela; se a primeira hora é tão desconhecida e tão fecunda, quantos evangelhos haveriam de escrever-se para fazer a história de todos os momentos desta vida mística de Jesus Cristo, que multiplica ao infinito as maravilhas e as multiplica eternamente, pois todos os tempos, propriamente falando, são apenas a história da ação divina?
O Espírito Santo fez notar, em caracteres infalíveis e incontestáveis, alguns momentos desta vasta duração, e recolheu na Sagrada Escritura algumas gotas deste mar. Aí vemos as maneiras secretas e ignoradas pelas quais fez aparecer Jesus Cristo no mundo e podemos seguir os canais e as veias que, na confusão dos filhos dos homens, distinguem a origem, a raça, a genealogia deste primogênito. Todo o Antigo Testamento não é senão um esboço das profundezas imutáveis desta obra divina; não há nele senão o que é necessário para chegar a Jesus Cristo. O Espírito divino guardou todo o resto escondido nos tesouros da sua sabedoria. E de todo esse oceano da ação divina, não faz senão aparecer um fiozinho de água, que chegando a Jesus se perdeu nos Apóstolos e se abismou no Apocalipse. E assim a história desta divina ação, que consiste em toda a vida que Jesus vive nas almas santas até ao fim dos séculos, não pode ser adivinhada senão pela nossa fé.
À manifestação da verdade de Deus pela palavra, sucedeu a manifestação da sua caridade pela ação. O Espírito Santo continua a obra do Salvador. Ao mesmo tempo que assiste a Igreja na pregação do Evangelho de Jesus Cristo; escreve ele mesmo o seu próprio evangelho e escreve-o nos corações: todas as ações, todos os momentos dos santos são o Evangelho do Espírito Santo. As Almas Santas são o papel, os seus sofrimentos e ações são a tinta. O Espírito Santo, por meio da pena da sua ação, escreve um evangelho vivo, mas não se poderá ler senão no dia da glória, em que depois de ter saído dos prelos desta vida será enfim publicado.
Ó história deliciosa! Ó livro encantador que o Espírito Santo está escrevendo atualmente! Está no prelo, ó almas santas! Não há dia em que se não vão compondo as letras, aplicando a tinta, imprimindo as folhas. Mas nós estamos na noite da fé, o papel é mais negro que a tinta, há confusão nos caracteres empregados, é uma lingua do outro mundo, não compreendemos nada deste livro. Só no céu o poderemos ler. Se nos fosse dado ver a vida de Deus e considerar todas as criaturas não em si mesmas mas no seu princípio; se pudéssemos ver a vida de Deus em todos os objetos; como a ação divina os move, os combina, os ajunta, os dirige todos para o mesmo fim, por opostos caminhos, reconheceríamos que tudo tem a sua razão de ser, a sua medida, as suas relações nesta divina obra.
Como, porém, ler este livro, cujos caracteres nos são desconhecidos, inumeráveis, dispostos ao revés e cobertos de tinta? Se a mistura de vinte e quatro letras é incompreensível, de modo que elas bastam para compor uma série infinita de volumes diferentes e todos admiráveis no seu gênero, quem poderá exprimir o que Deus realiza no universo? Quem poderá ler e compreender o sentido de tão vasto livro, no qual não há uma letra que não tenha a sua figura particular e que na sua pequenez não encerre profundos mistérios! E os mistérios não se vêem nem se sentem: são objeto da fé. A fé não julga da sua verdade e da sua bondade senão pelo seu princípio: porque em si mesmos são tão obscuros que todas as suas aparências não servem senão para os esconder, para cegar os que julgam só pela razão.
Divino Espírito Santo, ensinai-me a ler este livro! Quero tornar-me vosso discípulo, e com a simplicidade duma criancinha, crer o que não posso ver. Basta-me que o meu mestre fale. Ele diz isto, ele fala assim, ajunta as letras deste modo, faz-se ouvir desta maneira; isto me basta para eu crer que é tal qual como Ele disse. Não vejo a razão dessas coisas; mas Ele é a verdade infalível, e tudo o que Ele diz e faz é verdadeiro. Ele quer que essas letras estejam colocadas juntas para formar uma palavra, e que um determinado número de letras forme outra. São três, são seis, isso basta e menos fariam um sentido falso; só Ele, que sabe os pensamentos, pode ajuntar as letras para os escrever. Tudo tem significado, tudo tem sentido perfeito. Esta linha termina aqui, porque assim deve ser; não falta nem uma vírgula, não há um ponto que seja inútil. Assim o creio presentemente; e quando o dia da glória me revelar tantos mistérios, então verei o que agora não compreendo senão confusamente; e o que me parece tão embrulhado, tão complicado, tão falto de sentido, tão falto de nexo, tão imaginário, tudo isso me arrebatará, me encantará por toda a eternidade, com a beleza, a ordem, a sabedoria e as incompreensíveis maravilhas que em tudo descobrirei.
 
CAPÍTULO VI
Quantas verdades tão grandes, se encontram escondidas, ainda mesmo aos olhos dos cristãos que se julgam mais ilustrados! Quão poucos, entre eles, compreendem que toda a cruz, toda a ação, toda a inclinação da ordem de Deus, nos dá a Deus de um modo que não pode explicar-se melhor senão comparando-o com o mais augusto mistério. E contudo, nada há mais certo. Tanto a razão como a fé, não nos revelam a presença real do amor divino em todas as criaturas e em todos os acontecimentos da vida, tão certo como a palavra de Jesus Cristo e da Igreja nos ensinam a presença da carne sagrada do Salvador sob as espécies eucarísticas?
Porventura não sabemos que, por meio de todas essas criaturas e de todos esses acontecimentos, deseja unir-se a nós o divino amor; e que não dispôs, ou ordenou e permitiu tudo o que nos rodeia e nos acontece senão em vista desta união, fim único de todos os seus desígnios; que para atingir este fim, se serve das criaturas tanto das piores como das melhores, e dos acontecimentos quer dos mais agradáveis quer dos mais desagradáveis; e que por isso mesmo a nossa união com ele é tanto mais meritória quanto os meios que nos servem para a conservar, mais repugnam à nossa natureza!
Mas se tudo isto é verdade, de onde vem que cada um dos momentos da nossa vida seja uma espécie de comunhão com o divino amor, e que esta comunhão de todos os instantes, produza nas nossas almas tantos frutos como aquela em que recebemos o corpo e o sangue do Filho de Deus? Esta é certo que tem uma eficácia sacramental que a primeira não possui; mas por outra parte, aquela pode ser renovada muito mais frequentemente, e o seu mérito pode acrescentar-se pela perfeição das disposições com que é realizada!
Ó como a vida de fé se ilumina e sublima desta maneira, na sua simplicidade e na sua baixeza aparente. O festim, ó banquete perpétuo! Um Deus sempre dado e sempre recebido, não no esplendor sublime e luminoso, mas em tudo o que na terra há de fraqueza, de loucura, de nada!
Deus escolhe o que o espírito natural reprova e tudo o que a prudência humana rejeita, realizando assim mistérios e sacramentos de amor; e pelo que parece mais deveria prejudicar as almas, dá-se a elas tanto quanto elas crêem aí encontrá-Lo.
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CAPÍTULO VII
Ó quantas infidelidades se encontram no mundo! Ó como se pensa indignamente de Deus, pois sem cessar temos a ousadia de observar à ação divina o que não faríamos com o mais pequeno artista na sua arte. Queremos reduzir a ação de Deus às regras e aos limites imaginados pela nossa débil razão. Queremos reformá-la! Tudo são queixas, tudo murmurações!
Surpreende-nos e desperta a nossa indignação o tratamento dado a Jesus pelos judeus. Ó divino amor! Ó vontade adorável! Ó ação infalível! Como vos consideram! Porventura a vontade divina pode proceder fora de propósito ou fora de razão? Mas eu tenho um negócio e falta-me tal coisa; tiram-me os meios necessários; este homem atravessa-se em tão santas obras: ora isto não é completamente absurdo? Esta doença apodera-se de mim, sendo que eu não posso absolutamente prescindir da saúde. E eu digo que a vontade de Deus é a única coisa necessária; e assim, tudo o que ela não dá é inútil.
Não, ó queridas almas, nada vos falta. Se vós soubésseis o que são essas coisas que chamais revezes, contratempos, contrariedades, onde não vedes senão sem-razões e despropósitos, expеrimentarieis extrema confusão; repreender-vos-íeis a vós mesmas das vossas murmurações, como de verdadeiras blasfêmias; mas não pensais nisso. Porém tudo isso não é senão a vontade de Deus; e esta vontade adorável é blasfemada pelos seus queridos filhos, que a desconhecem!
Ó meu Jesus, quando vivíeis na terra os judeus trataram-vos de energúmeno, chamaram-vos samaritano; e hoje que viveis por todos os séculos, com que olhos é vista a vossa adorável vontade, sempre digna de bênçãos e de louvores! Passou porventura um só momento desde a criação do mundo até àquela em que vivemos, e passará algum até ao dia do juízo final, em que o santo nome de Deus não seja digno de louvores; esse nome que enche todos os séculos e tudo o que vai sucedendo em todos os tempos, nome que torna salutares todas as coisas? Pois quê? O que se chama vontade de Deus poderia ser-me nocivo? Haveria porventura de temer e de fugir do nome de Deus! E onde poderia encontrar alguma coisa de melhor, se receasse a ação divina sobre mim e rejeitasse o efeito da sua divina vontade!
Como é que devemos escutar a palavra que no fundo do nosso coração se nos vem repetindo a cada momento? Se os nossos sentidos e a nossa razão não compreendem e não penetram a amabilidade e a bondade desta palavra, não é isso devido à incapacidade para as verdades divinas? Devo admirar-me de que um mistério desconcerte a razão? Deus fala-me, é um mistério. É a morte para os meus sentidos e a minha razão, porque os mistérios são de natureza a imolá-los. O mistério é a vida do coração pela fé; todo o resto é contradição. A ação divina mortifica e vivifica com um mesmo golpe; quanto o mistério é mais obscuro, maior luz encerra. É por isso que a alma simples nada encontra de mais divino do que aquilo que na aparência o é menos. A vida da fé está toda nesta luta contra os sentidos.
 
CAPÍTULO VIII
As palavras que Deus pronuncia expressamente para nós, são as que propriamente falando, nos instruem bem. Não é pelos livros nem pela investigação curiosa das histórias, que nos tornamos sábios na ciência de Deus. Esses meios não produzem, por si mesmos, senão uma ciência vã e confusa, capaz somente de ensoberbecer. O que nos instrui é o que hora a hora, momento a momento, nos vai sucedendo; isso é o que forma em nós a ciência experimental, que Jesus Cristo quis adquirir antes de ensinar. Era de fato a única em que podia crescer, segundo a expressão do Evangelho, pois como Deus não há grau algum de ciência especulativa que Ele não possuísse. Mas se esta ciência foi útil ao próprio Verbo Encarnado, a nós é-nos absolutamente necessária para falarmos ao coração das pessoas que Deus manda ao nosso encontro.
Só conhecemos perfeitamente o que a experiência nos ensinou pela realidade do sofrimento. Essa é a verdadeira escola do Espírito Santo que ao coração fala palavras de vida; desta fonte deve brotar tudo aquilo que dizemos aos outros. O que lemos, o que vemos, não se torna ciência divina senão por esta fecundidade, esta virtude e esta luz que lhe dá o adquirido. Tudo isso não é senão como uma massa que necessita de fermento e deve ser condimentada pelo sal da experiência. E quando não há senão ideias vagas sem este sal, o homem é como um visionário que sabe todos os caminhos de todas as vilas e cidades, mas que se perde ao ir para a sua própria casa.
Portanto é preciso escutar a voz de Deus, momento a momento, para ser douto na teologia virtuosa, toda ela prática e experimental. Não te importe o que se diz aos outros. Ouve o que se diz para ti e a ti; e terás o bastante para exercitar a tua fé, pois esta linguagem interior de Deus exercita-a, purifica-a e aumenta a pela sua mesma obscuridade.
 
CAPÍTULO IX
Ó almas que vos abrasais em sede de santidade, sabei que não precisais de ir muito longe buscar a fonte das águas vivas, pois ela brota mesmo junto de vós, no momento presente; apressai-vos em correr para ela. Tendo tão perto a fonte, porque haveis de cansar-vos em correr para os regatos? Estes aumentam ainda mais a sede, não vos dando a água se não com medida; só a fonte é inesgotável. Se quereis pensar, escrever e viver como os profetas, os apóstolos, os santos, abandonai-vos como eles à inspiração divina.
Ó amor desconhecido! Parece que as vossas maravilhas já se acabaram e que não resta senão copiar as vossas antigas obras e citar os vossos discursos passados. E não se repara que a vossa ação inesgotável é fonte infinita de novos pensamentos, de novas realizações, de novos patriarcas, de novos profetas, de novos apóstolos, de novos santos, que não precisam de copiar nem a vida nem os escritos uns dos outros, mas de viver em perpétuo abandono às vossas secretas operações.
Ouve-se falar a cada passo, dos primeiros séculos como do tempo dos santos. Estranho modo de falar! Como se todos os tempos não fossem a sucessão dos efeitos da ação divina, que vai decorrendo por sobre todos os instantes, enchendo-os, santificando-os, sobrenaturalizando-os todos. Porventura houve jamais um modo antigo de se abandonar a esta operação divina, que não seja de completa atualidade? Ou tiveram os santos dos primeiros tempos, outros segredos que não fossem os de se tornarem, em cada momento, o que esta ação divina pretendia realizar neles? E esta ação deixará de espalhar até ao fim do mundo a sua graça sobre as almas que se abandonarem a ela sem reserva?
Ó sim, ó adorável e eterno amor, perenemente fecundo e sempre maravilhoso. Ó ação do meu Deus, vós sois o meu livro, a minha doutrina, a minha ciência; em vós estão os meus pensamentos, as minhas palavras, as minhas ações, a minha cruz. Não é consultando as outras obras vossas, que eu serei o que vós desejais fazer de mim, mas recebendo-vos em todas as coisas por este caminho real, único e antigo, o caminho dos nossos pais. Como eles, portanto, pensarei, como eles serei esclarecido, como eles falarei; nisto os quero imitar a todos, citar a todos, copiar a todos.
 
CAPÍTULO X
O momento presente é sempre como um embaixador, que declara a ordem de Deus. O coração pronuncia sempre o fiat. A alma vai deslizando assim para o seu centro e para o seu termo; sem se deter jamais, vai levada de todos os ventos; todos os caminhos e todas as maneiras a fazem igualmente avançar para o largo, para o infinito. Para ela tudo é um meio e um instrumento de santidade, sem nenhuma diferença. O que unicamente lhe é necessário encontra-o sempre no presente. Já não é a oração ou o silêncio, o retiro ou a conversação, o ler ou escrever, as reflexões ou a cessação de pensamentos, a fuga ou a procura dos bens espirituais, a abundância ou a miséria, a vida ou a morte, mas unicamente tudo o que cada momento lhe vai apresentando por disposição de Deus. Nisso é que consiste o desprendimento, a abnegação, a renúncia de tudo o criado para não ser nada por si nem para si, para estar em tudo na ordem de Deus e lhe agradar, tendo como única satisfação e contentamento viver o momento presente, como se nada mais tivesse de esperar neste mundo.
Se tudo o que sucede à alma abandonada é o unicamente necessário, vê-se claramente que nada lhe falta, nem deve queixar-se jamais; e se o faz, mostra falta de fé, vive da razão e dos sentidos que, como não vêem esta suficiência da graça, nunca estão satisfeitos.
Santificar o nome de Deus, conforme a expressão da Sagrada Escritura, é reconhecer a santidade de Deus, amá-lo e adorá-lo em todas as coisas. Com efeito, as coisas procedem dos lábios de Deus como palavras. O que Deus realiza em cada momento é um pensamento divino significado por uma coisa criada. E por isso todas as coisas em que nos intima a sua vontade, são outros tantos nomes e palavras em que nos mostra o seu desejo. Esta vontade, em si mesma, é só uma, não tem senão um só nome desconhecido e inefável; mas é multiplicada até ao infinito nos seus efeitos, os quais são todos como outros tantos nomes que vai tomando.
Santificar o nome de Deus, é conhecer, adorar, amar o Ser inefável que este nome exprime; é conhecer, adorar e amar a sua adorável vontade a todos os momentos, em todos os seus efeitos, considerando-os a todos como véus, sombras, nomes desta vontade eternamente santa. Santa em todas as suas obras, santa em todas as suas palavras, santa em todas as maneiras de se manifestar, em todos os nomes que vai tomando.
Assim é que Jó bendizia o nome de Deus. A desolação universal que a vontade de Deus lhe significava, bendizia-a esse santo homem e chamava-a não uma ruína, mas um nome de Deus, protestando que tal vontade divina significada pelas aparências mais terríveis, era santa, qualquer que fosse a forma ou o nome que tomasse. Davi bendizia-a também, em todo o tempo e lugar. Por este incessante descobrimento, por esta manifestação e revelação da vontade divina em todas as coisas é que o seu reino está dentro de nós, que Deus faz na terra o que faz no céu, que nos alimenta sem cessar.
O abandono à divina vontade compreende e contém toda a substância da incomparável oração, ensinada pelo próprio Jesus Cristo. Recitamo-la vocalmente várias vezes ao dia, conforme a ordem de Deus e da Santa Igreja; mas pronunciamo-la a cada momento no fundo do coração, quando mostramos amor e desejo de sofrer e fazer o que essa divina vontade nos prescreve. O que os lábios não podem pronunciar senão por sílabas, por palavras, em maior ou menor espaço de tempo, pronuncia-o realmente o coração em cada instante. É assim que as almas simples se aplicam a bendizer a Deus no fundo do seu ser. Gemem vendo-se impotentes para o bendizer quanto desejariam, pois é bem verdade que Deus dá a essas almas as suas graças e favores por meio daquilo mesmo que mais parece privação desses dons celestes. Mas é nisso que consiste o segredo da sabedoria divina: em empobrecer os sentidos enriquecendo o coração, e em encher a este tanto mais quanto aqueles experimentam um vácuo mais doloroso.
Aprendamos, portanto, a reconhecer o selo da vontade de Deus e do seu nome adorável, em tudo o que vai sucedendo em cada instante. Este nome é infinitamente santo. É, pois justo bendizê-lo, tratá-lo como uma espécie de sacramento, que por sua própria virtude santifica as almas que lhe não põem obstáculos. Quem poderá ver o que em si contém este nome augusto, sem o estimar infinitamente? É um maná divino que desce do céu, para dar um crescimento contínuo na graça. É o pão dos Anjos, que se come na terra e no céu. Nada há, portanto, de pequeno nos nos nossos momentos, pois todos encerram tesouros de graça, um alimento angélico. Venha, pois, Senhor, esse reino ao meu coração, para o santificar, o nutrir, o purificar, e lhe dar a vitória sobre os meus inimigos. Ó momento precioso! Como és pequeno aos olhos do vulgo, mas como és grande para os que te vêem iluminados pela fé. Como ter na conta de pequeno, aquilo que é grande aos olhos do meu Pai que reina nos céus? Tudo o que daí vem é excelente; tudo o que daí desce, traz o divino caráter da sua origem.
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CAPÍTULO XI
É por não saberem utilizar-se da ação divina, que tantos cristãos passam a vida correndo ansiosamente após uma multidão de meios, que podem ser úteis quando esta divina ação os ordena, mas que se tornam prejudiciais quando simplesmente impedem a união com ela. Toda essa multiplicidade não pode dar o que se encontra no princípio de toda a vida, que sem cessar nos está presente e que imprime a cada instrumento um impulso original tornando incomparável a sua ação.
Jesus enviou-nos um mestre que nós não escutamos bastante. Fala a todos os corações, diz a cada um a palavra de vida, a palavra única; mas não se lhe prestam ouvidos! Queremos saber o que disse aos outros, e não escutamos o que nos diz a nós mesmos. Não olhamos suficientemente as coisas no ser sobrenatural que a ação divina lhes dá. Deve-se receber e deve-se-lhe corresponder, conforme lhe é devido, com o coração aberto e uma atitude de plena confiança e generosidade, pois ela não pode fazer mal aos que assim a recebem.
A ação imensa que, desde o princípio até ao fim dos séculos, em si é sempre a mesma, vai passando por sobre todos os momentos; e na sua imensidade e na sua virtude, dá-se à alma simples que a adora, que a ama e que só com ela se goza.
Sentir-vos-íeis felizes, dizeis, em encontrar uma ocasião de morrer por Deus; encantar-vos-ia uma ação desta força, uma vida desta maneira. Perder tudo, morrer abandonado, sacrificar-vos pelos outros, são ideias que vos seduzem.
Eu, porém, Senhor rendo glória e toda a glória à vossa ação; nela encontro toda a felicidade do martírio, das austeridades, dos serviços prestados ao próximo. Esta ação me basta; de qualquer maneira que ela me faça viver e morrer, sou contente.
Agrada-me por ela mesma, por sobre todas as qualidades dos seus instrumentos e dos seus efeitos, pois se estende a tudo, tudo diviniza e tudo transforma em si. Tudo para mim é céu; todos os meus momentos são para mim ação divina, toda pureza; e quer na vida quer na morte quero alegrar-me com ela.
Sim, ó querido amor, não vos marcarei nem horas nem modos: sereis sempre benvindo. Parece-me, ó ação divina, que rasgastes ante os meus olhos o véu da vossa imensidade. Já só no vosso seio infinito é que eu dou os meus passos. Tudo o que provém hoje de vós, proveio ontem. O vosso fundo é o leito duma torrente de graças que se difundem sem cessar; vós é que as mantendes e agitais. Não hei de, pois, buscar-vos nos limites estreitos dum livro, da vida de um santo, ou duma ideia, por mais sublime que ela seja, pois são apenas como gotas desse mar que vejo espalhado sobre todas as criaturas. A todas inunda a ação divina. São átomos que desaparecem neste abismo. Não mais buscarei esta ação nos pensamentos das pessoas espirituais. Não irei mendigando o pão de porta em porta nem procurarei o agrado das criaturas.
Ó Senhor, quero viver de modo que vos faça honra, como filho dum verdadeiro pai infinitamente bom, sábio e poderoso. Quero viver em conformidade com aquilo que creio; e como esta ação divina se aplica constantemente e por todas as coisas à minha perfeição, quero viver desta grande e imensa riqueza; tesouro que não pode faltar, mas sempre presente e da maneira mais útil. Porventura haverá criatura cuja ação possa igualar a ação de Deu? E visto que essa mão incriada vai ela mesma dirigindo tudo o que me acontece, irei buscar socorro nas criaturas que são impotentes, ignorantes e sem afeição?
Iria morrer de sede, correndo de fonte em fonte, de ribeiro em ribeiro, tendo diante um mar que se espraia num dilúvio, encontrando-me rodeado de água por todas as partes!
Tudo se torna em pão para me alimentar, sabão para me branquear, fogo para me purificar; tesoura de jardineiro para em mim realizar figuras celestiais. Tudo é instrumento da graça para o que eu necessito; o que eu buscava em qualquer outra coisa, busca-me incessantemente e dá-se a mim por meio de todas as criaturas.
Ó divino amor! E tudo isto há de ser ignorado, haveis de por assim dizer lançar-vos à frente do mundo com todos os vossos favores, e vir a ser buscado por todos os cantos e recantos onde não sereis encontrado! Que loucura a de não respirar estando no meio do ar, de buscar onde pôr um pé estando em pleno campo; de não encontrar a água no dilúvio; de não encontrar a Deus, de não O saborear, de não receber a sua ação em todas as coisas!
Buscais os segredos de ser de Deus, ó queridas almas! Não há outros senão o de utilizar tudo o que Deus vos oferece. Tudo leva a esta união; tudo nos ajuda a aperfeiçoar-nos, exceto o que é pecado ou está fora da nossa obrigação: é só aceitar tudo e entregar-se à ação de Deus. Em tudo vos dirige, vos corrige e vos transporta. Tudo é mão de Deus. Tudo é terra, ar, água divina. A sua ação é mais extensa e mais presente que os elementos. Entra em vós por todos os vossos sentidos, desde que não useis deles senão conforme a ordem de Deus, pois é preciso fechá-los e resistir ao que não seja a sua vontade. Não há átomo que entrando em vós não vos faça penetrar esta divina ação até à medula dos OSSOS.
Tudo é dela e tudo por ela. Esse licor vital que vos corre nas veias, dela recebe o movimento. A diferença que existe nos vossos movimentos, a força ou a fraqueza, a languidez ou a vivacidade, a vida ou a morte, são instrumentos divinos a que ela imprime movimento para operar a vossa santificação. Sob a sua influência, todos os estados corporais se tornam operações da graça. Todos os vossos sentimentos e pensamentos, de onde quer que venham, partem dessa mão invisível. Não há coração nem espírito criado que possa ensinar-vos o que esta ação realizará; mas aprendê-lo-eis pela continuação da experiência. A vossa vida decorre sem cessar neste abismo desconhecido, onde não há senão que amar sempre e considerar o melhor aquilo que nos é presente, por uma perfeita confiança nesta ação, que de si não pode fazer senão bem.
Ó divino amor, todas as almas chegariam a estados sobrenaturais, sublimes, admiráveis, inimagináveis, se todas aceitassem de boa vontade a vossa ação. Se soubéssemos deixar liberdade a esta divina mão, atingiríamos a perfeição mais eminente. A ela chegariam todas as almas, pois a todas é oferecida. É só abrir a boca, e ela entrará por si mesma, pois não há alma que não tenha em vós o seu modelo infinitamente perfeito e que a vossa ação não trabalhe sem descanso por fazê-la semelhante a esse modelo. Se elas lhe fossem fiéis, viveriam, agiriam e falariam divinamente; não teriam senão de copiar-se umas às outras; a ação divina singulariza-las-ia a todas pelas coisas mais comuns.
Por que meio, ó meu Deus, poderei fazer apreciar das criaturas o que eu afirmo? Tendo um tesouro tão grande, que pode tornar rico o mundo inteiro, hei de ver morrer as almas na indigência! Hei de vê-las secar-se como as plantas do deserto, quando lhes mostro a fonte das águas vivas!
Vinde ó almas simples, que nem ao menos tendes uns laivos de devoção; almas desprovidas de talento, que nem sequer possuís os primeiros elementos de instrução, que não entenderam nada da terminologia espiritual, e deslumbradas admirais a eloquência dos sábios; vinde e eu vos ensinarei um segredo que vos fará passar acima de todos esses altos espíritos; eu vos tornarei a perfeição tão acessível que a encontrareis sempre debaixo dos vossos pés, sobre a vossa cabeça e ao redor de vós; e eu vos unirei a Deus e vo-lo farei ter da mão desde o primeiro momento em que puserdes em prática o que vos disser. Vinde, não para saber o mapa do país da espiritualidade mas para o possuir e para vos movimentardes nele à vontade, sem perigo de vos perderdes.
Vinde, não para estudar a teoria da divina graça; não para aprender o que ela tem realizado em todos os séculos, e ainda agora leva a cabo, mas simplesmente para a praticardes. Não precisais de saber as palavras que ela tem feito ouvir aos outros, para as recordar engenhosamente; mas ela vos falará em linguagem acomodada à vossa condição.
 
CAPÍTULO XII
A ação divina realiza no decorrer dos tempos as ideias que a eterna Sabedoria formou de todas as coisas. Só Deus pode fazer conhecer a cada alma a ideia que está destinada a realizar. Ainda que conhecêsseis todas as que vos não dizem respeito, esse conhecimento em nada poderia dirigir-vos. A ação divina vê no Verbo tudo o que convém a cada alma santa. A Escritura compreende uma parte, e a operação do Espírito Santo no interior das almas acaba o resto, conforme os exemplares que o Verbo lhe propõe.
Quem não vê que o único segredo de receber o carácter dessa ideia eterna é ser como matéria maleável entre as suas mãos e que nem os esforços nem as especulações do espírito podem contribuir em coisa alguma para isso? Não é manifesto que essa obra não se faz por meio de habilidade, de inteligência, de sutilidade de espírito; mas por via passiva, pela disposição em se deixar trabalhar, como o metal num molde, como uma tela sob a ação do pincel, ou um bloco de pedra sob a ação do escultor? Quem não vê que o conhecimento de todos estes mistérios divinos que a vontade de Deus opera e operará pelos séculos fora, não é o que nos torna conformes à imagem que o Verbo concebeu de nós; que a nossa semelhança ao tipo divino não nos pode vir senão da impressão deste selo misterioso, e que esta impressão não se faz no espírito por ideias, mas na vontade por abandono?
A sabedoria da alma simples consiste em se contentar com o que lhe é próprio, em confinar-se aos limites do seu caminho e não ir além da sua linha. Não tem curiosidade de saber os modos de agir de Deus; mas contenta-se com a ordem da divina vontade a respeito dela, não procurando adivinhá-la por meio de comparações ou conjecturas, não querendo saber senão o que cada momento lhe revela; escutando a palavra do Verbo quando ela se lhe faz ouvir no fundo do coração, não se informado junto do divino Esposo do que Ele disse aos outros; contentando-se com o que recebe no fundo da alma, de modo que de um momento a outro tudo a diviniza sem que ela o saiba.
Desta maneira é que o Esposo fala à esposa, pelos efeitos realíssimos da sua ação, os quais a esposa não perscruta curiosamente mas aceita com amoroso reconhecimento. Assim a espiritualidade desta alma é simples, toda substancial, intimamente difundida em todo o seu ser. Não são as ideias nem as palavras tumultuosas que a levam a atuar, pois as palavras, desacompanhadas dos atos servem só para fomentar a soberba. Recorre-se muito ao espírito para a piedade; porém muitas vezes é nocivo. A alma não se deve guiar senão pelo que Deus Dá a sofrer e a fazer; mas deixa-se esta substância divina para ocupar o espírito com as maravilhas históricas da obra divina, em vez de as aumentar pela própria fidelidade!
As maravilhas desta obra, que nos satisfazem a curiosidade nas nossas leituras, não servem muitas vezes senão para nos tirar o gosto destas coisas pequenas na aparência, pelas quais o amor divino realizaria em nós grandes maravilhas, se não as desprezássemos. Adoramos e bendizemos esta ação divina, nos escritos que narram a sua história; mas quando ela deseja continuá-la, escrevendo-a nos nossos corações, mantemos o papel em constante agitação e impedimo-la de escrever, levados da curiosidade de ver o que ela vai realizando em nós e fora de nós.
Perdão, ó divino amor, porque eu não escrevo aqui senão os meus defeitos, e ainda não realizei o que seja entregar-me livremente e sem restrições à vossa ação. Não me deixei ainda lançar no molde. Percorri todas as vossas oficinas, admirei todas as vossas figuras, mas até agora não tive ainda o abandono necessário para receber os traços do vosso divino pincel.
Encontrei-vos, enfim, ó meu amado mestre e doutor, meu pai, meu querido amor! Quero ser vosso discípulo, não quero frequentar outra escola. Como o filho pródigo, volto morto de fome, desejoso do vosso pão. Deixo de lado as ideias que não tenderiam senão para satisfazer a curiosidade do meu espírito; não mais quero correr após os mestres e os livros; não mais usarei desses meios senão sob a dependência da ação divina, não para me satisfazer, mas para vos obedecer em todas as coisas que me apresentardes. Quero concentrar-me unicamente no momento atual, para vos amar, para me desempenhar das minhas obrigações e para dar inteira liberdade à vossa divina ação.
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Livro Terceiro: Da assistência paternal com que Deus envolve as almas que se abandonam inteiramente a ele

 
CAPÍTULO I
“Sacrificate sacrificium justitiae et sperate in Domino: Sacrificai, diz o profeta, um sacrifício de justiça, e esperai no Senhor”. Isto é, o grande e sólido fundamento da vida espiritual é dar-nos a Deus, para sermos o objeto da sua vontade, em tudo, no interior e no exterior; e depois esquecer-nos tão perfeitamente de nós, que nos consideremos como uma coisa vendida e entregue, à qual já não há direito algum; de tal sorte que o bel-prazer de Deus constitui a nossa alegria; e a sua felicidade, a sua glória e o seu ser, o nosso único bem.
Posto este fundamento, a única ocupação da alma não é já senão alegrar-se de que Deus é Deus, abandonando-se de tal modo à divina vontade que experimente igual contentamento em fazer isto ou aquilo, ou o contrário, não fazendo reflexão alguma sobre as disposições da mesma divina vontade.
Abandonar-se! Tal é, pois, o grande dever que nos resta para cumprir, depois de desempenhadas fielmente as obrigações do próprio estado. A perfeição em realizar este dever será a medida da santidade.
Uma alma santa não é senão uma alma submetida livremente à vontade divina, com o auxílio da graça. Tudo o que se segue à completa entrega é obra de Deus e não do homem. Recebendo-o cegamente e num abandono e indiferença universal, Deus não pede à alma senão esta disposição; o resto determina-o e escolhe-o Ele, segundo os seus desígnios, como um arquiteto escolhe e marca as pedras do edifício que se propõe construir.
É preciso, portanto, amar a Deus e a ordem de Deus em tudo; e amá-lo tal como se apresenta, sem nada mais desejar. Que tais ou tais objetos sejam oferecidos, é coisa que não diz respeito à alma senão a Deus; e o que Deus dá é sempre o melhor.
Que grande síntese de espiritualidade se contém nesta máxima, neste abandono puro e completo à ordem de Deus! Neste contínuo esquecimento de si mesmo, ocupando-se eternamente em amá-lo e em obedecer-lhe, sem esses temores, essas reflexões, essas preocupações e inquietações, que provém por vezes do cuidado da própria salvação e perfeição! Uma vez que Deus se nos oferece para zelar os nossos interesses, entreguemo-los confiadamente e para sempre à sua infinita sabedoria e não nos preocupemos senão de Deus e do que a Deus diz respeito.
Vamos, pois, ó alma, de cabeça bem levantada acima de tudo o que se passa fora e dentro de nós, contentes sempre com o que Deus faz de nós e o que dispõe que nós façamos. Estejamos atentos para não enveredarmos imprudentemente por essa multidão de reflexões inquietantes que, como atalhos perdidos, se oferecem ao nosso espírito para o desviar do caminho e o levar, com pura perda, a dar passos sem fim. Atravessamos este labirinto do nosso amor próprio, saltando-lhe por cima, sem nos metermos nos seus meandros intermináveis.
Vamos, ó alma, através da languidez, da doença, da secura, da desigualdade de humores, das fraquezas do espírito, das ciladas do demônio e dos homens, das suas desconfianças, ideias sinistras, invejas e preconceitos.
Como águias, pairemos acima de todas essas nuvens, de olhar sempre fixo no divino sol e nas nossas obrigações, que são os seus raios. Sintamos tudo isso; ser insensíveis não depende de nós. Mas lembremo-nos que a nossa vida não é uma vida de sentimento. Vivamos na região superior da alma, onde Deus e a sua vontade operam uma eternidade sempre igual, sempre uniforme, sempre imutável. Nesta mansão toda espiritual, onde o incriado, o indistinto, o inefável conserva a alma infinitamente afastada de tudo o que são sombras e átomos criados, reina a calma e tranquilidade, mesmo que os sentidos se vejam batidos pelas tempestades. Adquiriu-se a independência dos sentidos; e as suas agitações e inquietudes, idas e vindas e imemoráveis metamorfoses não perturbam mais do que as nuvens que escurecem um momento o céu e desaparecem. Deus e a sua vontade, eis o eterno objeto que, encantando o coração no estado de fé, como no estado de glória, fará a sua verdadeira felicidade. Por mais terríveis que sejam os monstros que venham atacá-lo, a ação divina dá ao coração um bem-estar todo celeste e nada poderá arrebatar-lho.
A alma de fé conhecedora do segredo de Deus, permanece completamente em paz; e tudo o que nela se passa, em vez de perturbá-la, serve para dar-lhe confiança e tranquilidade. Intimamente persuadida de que é Deus que a conduz, tudo aceita como uma graça, e vivendo completamente esquecida da matéria sobre que Deus trabalha, não pensa senão na obra encomendada aos seus cuidados. O amor anima-a sem cessar a cumprir com fidelidade e exatidão as próprias obrigações. Tudo o que é elevado na alma abandonada a Deus, é ação da graça, exceto as faltas que são nela mais leves e que esta mesma ação torna em bem. Chamo “elevado” tudo aquilo que a alma sensível recebe de impressões aflitivas ou consoladoras, pelos objetos aos quais a vontade divina a aplica sem cessar para seu bem; e chamo-o “distinto” porque é o que a alma distingue melhor, de tudo o que se passa nela. Encontrar a Deus sob todas essas aparências, é a grande arte da fé; servir-se de tudo para se unir a Deus, é o seu exercício.
 
CAPÍTULO II
É sobretudo a respeito das almas que se abandonam completamente a Deus, que se realiza a palavra de S. João: Não precisais de que vos instruam, mas a unção divina vos instrui de tudo. Para saber o que Deus deseja delas, não têm senão que consultar esta unção, sondar o próprio coração e ouvir o que ele diz, pois é o intérprete da vontade de Deus segundo as diversas ocorrências. A ação divina, apesar de oculta, revela-lhe os seus desígnios, não por ideia mas por instinto. Descobre-lhos, ou por necessidade não lhe permitindo tomar outro partido senão o que se apresenta; ou por um primeiro movimento e uma espécie de arrebatamento sobrenatural, que o leva a proceder sem reflexão; ou enfim por uma impressão de inclinação ou afastamento, que the conserva toda a liberdade mas nem por isso deixa de o levar a aproximar-se ou afastar-se dos objetos.
Se nos atemos às aparências, o deixar-se levar assim para o incerto é sem dúvida uma grande carência de virtude. Se julgamos conforme as regras ordinárias, nada há de fixo, de uniforme nem de concertado, no modo de proceder; não obstante, nisso está precisamente o ponto mais elevado da virtude, e ordinariamente não se atinge senão depois de prolongado exercício. A virtude deste estado é a virtude em toda a sua pureza; é a própria perfeição. Somos como um maestro que a um longo exercício ajuntasse um perfeito conhecimento da música; estaria tão penetrado da sua arte que, sem pensar, tudo o que fizesse para a estender, teria a plenitude da perfeição. Examinadas depois as suas composições, verificar-se-ia uma conformidade perfeita com o que prescrevem as regras da arte e adquirir-se-ia a convicção de que nunca seria maior o êxito do que quando, desembaraçado das regras que encadeiam o gênio se observadas escrupulosamente, procede sem constrangimento; e os seus improvisos, como outras tantas obras primas, seriam a admiração dos entendidos.
Assim a alma, longamente exercitada na ciência e na prática da perfeição, sob o império do raciocínio e dos métodos de que se foi ajudando para secundar a graça, adquire insensivelmente o hábito de em tudo tender instintivamente para Deus. Parece então que nada melhor pode fazer do que o que primeiro se apresenta, sem essa série de raciocínios de que antes necessitava. Não lhe resta senão proceder à ventura, sem possibilidade de entregar-se senão ao gênio da graça, que não a pode desencaminhar. O que nesse estado de simplicidade ela realiza, não oferece nada que não seja maravilhoso, aos olhos esclarecidos e aos espíritos inteligentes. Carece de regra, e nada há de mais exato; de medida, e nada mais bem concertado; de reflexão, e nada há mais profundo; de indústrias, e nada mais bem ordenado; de esforços, e nada mais eficaz; de previdência, e nada se acomoda melhor aos acontecimentos que sobrevêm.
A leitura espiritual, pela ação divina, dá muitas vezes a inteligência que os autores jamais tiveram. Deus serve-se das palavras e das ações dos outros, para inspirar verdades até então encobertas. Se quer esclarecer por estes meios, é próprio do abandono servir-se deles; e todo o meio aplicado pela ação divina tem uma eficácia que sobrepuja sempre a sua virtude natural e aparente.
É caráter próprio do abandono levar sempre uma vida misteriosa e receber de Deus os dons extraordinários e miraculosos pelo uso das coisas comuns, naturais, fortuitas, de acaso e onde nada aparece que não seja o curso ordinário dos elementos do mundo. E assim, os sermões mais singelos, as conversas mais comuns e os livros menos elevados tornam-se para essas almas, pela virtude da ação de Deus, fontes de inteligência e de sabedoria. Por isso recolhem com tanto cuidado as migalhas que os espíritos fortes calcam aos pés. Para elas tudo é precioso, tudo serve para as enriquecer; estão numa indiferença inexprimível para com todas as coisas e não descuidam nenhuma, respeitando-as e utilizando-as ao mesmo tempo.
Quando Deus está em todas as coisas, o uso que se faz delas por sua ordem não é uso das criaturas, mas aproveitamento e gozo da ação divina, que transmite os seus dons por meio destes canais.
Não santificam por si mesmas, mas somente como instrumentos da ação divina, que pode comunicar e com frequência comunica as suas graças às almas simples, tomando como instrumento coisas que poderiam parecer opostas ao fim que ela pretende. Ilumina com o lodo como com a matéria mais sutil, e o instrumento de que se quer servir é sempre dotado de eficácia. Tudo lhe é igual. A fé crê sempre que não lhe falta nada: não se queixa da privação dos meios que julga úteis para o seu adiantamento, porque o artista que os maneja supre eficazmente com a sua vontade. Desta vontade santa é que provém toda a virtude das criaturas.
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CAPÍTULO III
As almas que caminham na luz cantam cânticos de luz; as que caminham nas trevas cantam o cântico das trevas. Deixai cantar a umas e as outras, até ao fim, a parte e o motete que Deus lhes destina. Quando é Deus a encher a alma nada temos nós que ajuntar, mas deixar correr todas as gotas desse fel das amarguras divinas. Assim faziam os profetas Jeremias e Ezequiel: todas as suas palavras não eram senão gemidos e suspiros, só encontrando a consolação nesses continuados lamentos. Quem tivesse detido o curso dessas lágrimas, ter-nos-ia privado de alguns dos trechos mais belos da Sagrada Escritura. Só o espírito que produz a desolação é capaz de dar a consolação: são águas diferentes, mas que brotam da mesma nascente divina.
Quando Deus atemoriza uma alma, ela treme; quando a ameaça, ela sente-se tomada de pavor. Deixai desenvolver-se a operação divina, que em toda a sua extensão traz consigo o mal e o remédio. Chorai, queridas almas, tremei na vossa inquietação e agonia; não façais esforços para mudar esses divinos temores e esses celestes gemidos. No fundo do vosso ser recebei os arroios desse mar que inundou a alma santa de Jesus. Ide sempre para diante, semeando lágrimas, enquanto o sopro da graça as fizer correr; e insensivelmente o mesmo divino sopro as fará secar. As nuvens dissipar-se-ão, o sol voltará a espalhar a sua luz, a primavera cobrir-vos-á de flores, e na sequência do vosso abandono encontrareis a admirável variedade, produzida pela ação divina em toda a sua extensão.
Verdadeiramente, o homem perturba-se em vão! Tudo o que por ele passa é semelhante a um sonho. Vem uma sombra que faz desaparecer a outra. Nos que dormem, as imaginações vão se sucedendo: umas afligem, outras consolam. A alma é joguete destas aparências, que umas às outras se destroem. O despertar faz ver como todas eram igualmente vãs; dissipa todas as impressões, e o homem não liga importância nem aos perigos nem às felicidades que passou durante o sono.
Senhor, não poderei eu em verdade dizer que tendes adormecidos a todos os vossos filhos no vosso seio, durante a noite da fé, e que vos comprazeis de fazer perpassar pelas suas almas uma infinita variedade de sentimentos, que no fundo são apenas santos e misteriosos sonhos? No estado a que a noite e o sono os reduzem, experimentam neles verdadeiros e dolorosos temores, angústias e aflições, que Vós no dia da glória dissipareis e convertereis em verdadeiras e sólidas alegrias.
É neste despertar, e como consequência dele, que as almas santas, tornadas a elas mesmas e à plena liberdade de apreciação, não poderão cansar-se de admirar as indústrias, as invenções, as delicadezas e os enganos amorosos do Esposo; e compreenderão quanto são impenetráveis os seus caminhos, como era impossível adivinhar os seus enigmas, surpreendê-lo nos seus disfarces, sem admitir consolação alguma quando Ele queria espalhar o temor e o alarme. Neste despertar, verão os Jeremias e os Davis como o que em Deus e nos anjos era motivo de alegria, a eles os desolava inconsolavelmente.
Espíritos fortes, indústrias e ações humanas, não desperteis a esposa; deixai-a gemer, tremer, correr, buscar, mas deixai-a dormir. É verdade que o Esposo a engana e se disfarça: ela sonha, mas as suas penas são as da noite e do sonho; deixai o Esposo trabalhar esta alma querida e representar nela o que só Ele sabe pintar e exprimir, deixai-o desenvolver toda a sequência dessa aparência: quando for tempo, Ele a despertará. José faz chorar Benjamim: criado de José, não reveleis o seu segredo a esse irmão querido. José engana-o; mas o engano vem demonstrar toda a sua penetração e toda a sua indústria. Benjamim e seus irmãos vêem-se submersos em uma dor irremediável. Não é senão um jogo de José; os pobres irmãos não vêem nisso senão um mal sem remédio. Não digais nada; ele tudo remediará; ele mesmo os despertará e admirarão a sua sabedoria, fazendo-lhes reconhecer em tantos males e desesperos, o motivo mais real de alegria que jamais houve para eles no mundo.
 
CAPÍTULO IV
Mas procuremos aprofundar no conhecimento da ação divina e dos seus amorosos enganos. O que ao parecer tira à boa vontade, dá-lho sem a alma o conhecer. Não deixa que lhe falte nada; como se alguém sustentasse um amigo com generosidades de que deixasse parecer que era o autor, e depois, para o bem desse mesmo amigo, procedesse como quem não o quer obrigar, não cessando de lhe prestar sempre auxílio da mesma maneira, porém sem se dar a conhecer. O amigo, não suspeitando deste dissimulado mistério de amor, sentir-se-ia picado. Quantas reflexões, quantos raciocínios sobre o procedimento do seu benfeitor! Mas em o mistério começando a revelar-se, Deus sabe os variados sentimentos que simultaneamente se elevariam nessa alma: alegria, ternura, agradecimento, amor, confusão, admiração! Não redobraria de zelo e de ardor para com o amigo? Esta prova não o firmaria ainda mais na dedicação para com ele, procurando ao diante estar mais prevenido contra semelhantes surpresas?
A aplicação salta à vista. Quanto mais parecemos perder com Deus, mais ganhamos; quanto mais nos corta do natural, mais dá de sobrenatural. Amávamo-Lo pelos seus dons; mas não os vendo agora, acabamos por amá-Lo somente por si mesmo. É pela aparente privação desses dons sensíveis, que Deus prepara esse grande dom, o mais precioso e dilatado de todos, pois a todos contém. As almas que uma vez se submeteram totalmente à sua ação, devem interpretar sempre tudo favoravelmente: tudo, ainda mesmo a perda dos mais excelentes diretores, ou a desconfiança que involuntariamente sentiriam para com os que se oferecem mais do que se deseja. Porque, em geral, essa casta de guias, que por sua conta se metem a correr atrás das almas, bem merecem que se desconfie deles. Os que verdadeiramente estão animados do espírito de Deus, não mostram, de lei ordinária, tanta pressa e tanta suficiência; em vez de se fazerem chamados, as almas é que os chamam; e mesmo então, nota-se sempre nos seus passos uma certa hesitação e enleio.
A alma que se entregou totalmente a Deus deve, pois, atravessar sem temor todas estas provas, não deixando que lhe seja arrebatada a sua liberdade. Desde que permaneça fiel à ação divina, esta ação onipotente saberá operar maravilhas nela, apesar de todos os obstáculos. Deus e a alma realizam em comum uma obra, cujo êxito, ainda que dependa totalmente do divino artífice, só pode ser comprometido pela infidelidade da alma.
Quando a alma vai bem, tudo vai bem; pois o que pertence a Deus, isto é, a parte e a ação divina, é por assim dizer o reflexo ou a repercussão da fidelidade da alma. É o lado belo da obra, a qual se executa ao modo das soberbas obras de tapeçaria que se trabalham ponto por ponto e do lado do avesso. O operário que nelas se emprega não vê senão o seu ponto e a sua agulha; e todos esses pontos sucessivamente cheios fazem figuras magníficas, que não aparecem senão quando, concluídas todas as partes, se expõe à vista o lado direito dessa obra de arte. Mas durante o tempo da elaboração, toda essa maravilhosa beleza está na obscuridade.
É o que sucede com a alma abandonada; não vê senão a Deus e ao seu dever. O cumprimento deste dever não é, em cada momento, senão como um ponto imperceptível, que se vai ajuntando à obra. E contudo é com estes pontos que Deus opera as suas maravilhas, das quais por vezes temos um pressentimento no tempo, mas que não serão bem conhecidas senão à luz da eternidade. Ó como o procedimento de Deus é cheio de bondade e de sabedoria. De tal modo reservou exclusivamente para a sua graça e para a sua ação tudo o que há de sublime, de elevado, de grande e de admirável na perfeição e na santidade; e de tal maneira deixou as nossas almas, ajudadas do socorro da graça, o que é pequeno, claro e fácil, que não há ninguém no mundo que não possa atingir a perfeição mais eminente, cumprindo com amor os deveres mais comuns e obscuros.
 
CAPÍTULO V
O movimento constante e infalível da ação divina dirige sempre a propósito a alma simples, a qual discretamente corresponde em tudo a essa íntima direção, aceitando tudo o que lhe sucede e tudo quanto sente, nela e fora dela, menos o pecado. Muitas vezes isso dá-se com conhecimento, outras vezes sem ele, quando a alma é levada por instintos obscuros a dizer, a fazer ou a deixar as coisas, sem ter outras razões.
Outras vezes a ocasião e a razão que a determinam são apenas de ordem natural: a alma simples não vê aí mistério algum, antes um puro acaso, uma necessidade, uma conveniência, um nada, aos seus olhos e aos dos outros. E contudo a ação divina, que é a inteligência, a sabedoria e o conselho dos seus amigos, serve-se, em favor deles, de coisas tão simples. Faz suas essas coisas e opõe-as tão destramente a todos os que fazem projetos de os prejudicar, que se lhes torna impossível conseguirem os seus intentos.
A ação divina livra a alma e isenta-a de todos esses meios baixos e inquietos, tão necessários à prudência humana. São bons para Herodes e para os fariseus; mas aos Magos basta-lhes simplesmente seguir em paz a estrela; e ao Menino repousar nos braços de sua mãe. Os inimigos põem em jogo as suas indústrias, mas sem lhe poderem fazer mal; quanto mais se esforçam por surpreendê-lo e atravessar-se-lhe no caminho, tanto mais tranquila e livremente ele procede. Não procurará o seu trato, não os adulará indignamente para evitar os seus golpes, as suas invejas e os seus atos de desconfiança. As suas perseguições são-lhe necessárias. Jesus Cristo vivia assim na Judeia e vive da mesma forma nas almas simples; é generoso, suave, livre, pacífico, sem temor, sem necessidade de ninguém, vendo todas as criaturas nas mãos do Pai, pressurosas de o servirem, umas pelas suas paixões criminosas, outras por suas santas ações, estas pela falta de sujeição, aquelas pela obediência e submissão. A ação divina ajusta maravilhosamente todos esses elementos, sem que nada haja de menos nem de mais; bem e mal, há o que é necessário haver.
A ordem de Deus vai em cada momento aplicando o instrumento apropriado; e a alma simples, elevada pela fé, tudo acha bem, e não quer nem mais nem menos do que aquilo que tem. Em todo o tempo bendiz essa divina mão que sabe ministrar-lhe tão a propósito os meios e livrá-la dos obstáculos; recebe amigos e inimigos com a mesma doçura, pois essa é a maneira com que Jesus acolhe a todos, como instrumento divino. Não há necessidade de ninguém, e não obstante há necessidade de todos: a ação divina torna tudo necessário; e tudo se deve receber da sua parte, tomando cada coisa segundo a sua qualidade e segundo a sua natureza, correspondendo-lhe com doçura e humildade, tratando os simples com simplicidade e os grosseiros com bondade. É o que ensinou S. Paulo e o que melhor ainda praticava Jesus Cristo.
Só a graça pode imprimir esse ar sobrenatural que se adapta e apropria tão maravilhosamente à natureza de cada pessoa. É coisa que não se aprende nos livros, é um verdadeiro espírito profético e efeito duma revelação íntima. É um ensinamento do Espírito Santo; e para o conceber é necessário ter chegado ao último grau do abandono, o desprendimento mais perfeito de todo o desígnio e de todo o interesse próprio por mais santo que seja. É necessário ter sempre diante dos olhos o único negócio deste mundo, isto é, a entrega dócil e rendida à ação divina, para cumprir as obrigações do próprio estado, deixando plena liberdade no interior ao Espírito Santo, sem estar a olhar ou a fixar-se na sua ação, satisfeitos mesmo sem a conhecerem. Então há segurança; porque tudo o que sucede no mundo não é senão para o bem das almas perfeitamente submetidas à vontade de Deus.
 
CAPÍTULO VI
Mais temo a minha própria ação e a dos meus amigos, do que a dos meus inimigos. Não há prudência igual à de não resistir aos inimigos, e de não lhes opor senão o simples abandono; é como navegar de vento em popa; basta conservar-se em paz. São como condenados às galés que levam o navio para o porto com toda a força dos remos. Nada há que mais seguramente possa opor-se à prudência da carne, do que a simplicidade, a qual se desvia admiravelmente de todas as trapaças do inimigo, sem as conhecer, sem mesmo pensar nelas.
Ter de tratar com uma alma simples é em certo modo ter de tratar com Deus. Que medidas tomar contra o Todo Poderoso, cujos caminhos são inescrutáveis? Deus toma na sua mão a causa da alma simples: não é necessário que ela estude as vossas intrigas, opondo inquietação a inquietação e espiando cautelosamente todos os vossos passos. O Esposo alivia-a de todos esses cuidados e ela descansa cheia de paz e de segurança. A ação divina inspira-lhe e faz lhe tomar medidas tão justas que ela chega a surpreender os que pretendem colhê-la de improviso. Aproveitando-se dos esforços do inimigo, eleva-se por onde a querem abater. As contrariedades tornam-se-lhe todas em bem; não se preocupando com a oposição dos inimigos, tira daí um esforço de serviço tão continuado e tão útil que tudo o que ela tem a temer é pôr-se a trabalhar numa obra da qual Deus quer ser o princípio, mas os seus inimigos são os instrumentos, e onde ela nada tem a fazer senão contemplar pacificamente a ação de Deus e seguir com simplicidade as inclinações que Deus lhe põe no coração. A prudência sobrenatural do Espírito divino, princípio dessas inclinações, atinge infalivelmente o ponto e as circunstâncias íntimas de cada coisa, e a esse trabalho aplica a alma, sem que ela o saiba mas de modo tão apropriado que tudo o que a ela se opõe acaba por ser destruído.
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CAPÍTULO VII
Esta ordem da bondade divina que se apresenta incessantemente oculta sob o véu das cruzes e das ações mais vulgares, é a pedra firme sobre a qual a alma repousa confiadamente, ao abrigo das flutuações e das tempestades. Nesta sombra é que Deus esconde a sua divina mão, para apoiar e guiar os que a Ele se abandonam. Estabelecida firmemente neste perfeito abandono, encontra-se defendida da contradição das línguas, pois nada mais precisa de fazer ou de dizer, para sua defesa. Sendo de Deus a obra, escusado é buscar em outra parte a justificação. Os efeitos e as consequências justificá-la-ão plenamente. É deixá-la desenvolver. Dies diei eructat verbum. Quando não são as próprias ideias a dirigir a ação, não é preciso buscar palavras para a defender. As nossas palavras só podem exprimir as nossa ideias; onde se não supõem ideias, sobram as palavras. De fato para que serviriam? Para dar razão do que se faz? Mas essa razão é desconhecida; está escondida no princípio que leva à ação e do qual somente se experimentou a impressão, dum modo inefável.
Deve, pois, deixar-se às consequências o cuidado de justificar os seus princípios. Tudo se ampara neste encadeamento divino; tudo nele está sólido e firme, e a razão do que precede está como efeito no que se segue. Já não é uma vida de pensamentos, de imaginações, de palavras multiplicadas; nada disso ocupa a alma, nem a alimenta ou mantém. Já não vê por onde caminha nem se preocupa por onde seguir; não se auxilia com reflexões para animar-se a aturar a fadiga e a suportar as incomodidades do caminho; tudo se passa no sentimento mais íntimo da sua fraqueza.
O caminho abre-se-lhe diante dos pés; mete-se a ele e vai por ele sem hesitar. É pura, simples e verdadeira; avança na linha reta dos mandamentos de Deus, docemente reclinada no próprio Deus, que sem cessar encontra em todos os pontos dessa linha. E esse Deus a quem ela unicamente procura, encarrega-se de manifestar a sua presença, vingando-a dos injustos detratores.
 
CAPÍTULO VIII
Há um tempo em que Deus quer ser para a alma a sua vida, realizando por si mesmo a sua perfeição de maneira secreta e desconhecida. Então todas as ideias próprias, luzes, indústrias, pesquisas e raciocínios são uma fonte de ilusões. E quando a alma, depois de ter experimentado muitas vezes as tristes consequências às quais a conduziu a propriedade de si mesma, reconhece enfim quanto ela lhe é inútil, descobre que Deus escondeu e confundiu todos os canais, para que só n'Ele mesmo encontrasse a vida. Então, convencida do seu nada e de que tudo quanto pode haurir do fundo de si mesma só lhe é prejudicial, abandona-se a Deus, para nada ter senão a Ele.
Deus torna-se, portanto, para a alma uma fonte de vida, não por ideia, por iluminação ou reflexões (tudo isso nela é unicamente uma fonte de ilusão), mas pela realidade das suas graças, escondidas sob as aparências mais estranhas. Como a alma não conhece a operação divina, recebe dela a virtude e a substância por mil espécies de circunstâncias que julga serem a sua ruína. Para semear escuridão, não há remédio, é deixar-se afundar nela. Deus dá-se nela e consigo dá todas as coisas, em obscuridade de fé; a alma está então como cega; ou, por assim dizer, é semelhante a um doente que ignora a eficácia do remédio e só lhe sente o amargor. Imagina muitas vezes que lhe querem dar a morte; as crises e debilidades que lhe sobrevêm, parecem justificar os seus temores; e contudo é sob esta aparência de morte que recebe a saúde, tomando-os confiado na palavra do médico que lhos receita.
Deste modo, as almas abandonadas vivem sem preocupação alguma das suas enfermidades, exceto das doenças que saltam à vista, as quais, por sua natureza, obrigam à cama e a tomar os remédios convenientes. Os desfalecimentos e impotências das almas de abandono não passam de ilusões e aparências, as quais devem afrontar confiadamente. Deus que lhos envia e permite para lhes excitar a fé e o abandono no qual para elas está o verdadeiro remédio.
Sem lhes dar sequer atenção, devem continuar o seu caminho generosamente nas ações e sofrimentos da ordem de Deus, empregando as suas forças no serviço de Deus sem receio e sem temor, banindo para longe tudo o que sejam concessões e fraquezas que prejudicam o vigor do espírito. Esta energia do espírito tem uma virtude oculta e desconhecida para dar forças a um corpo débil; e um ano de vida assim nobre e generosa vale muito mais do que um século de cuidados e receios.
É necessário manter habitualmente um ar e uma atitude de boa disposição e de boa vontade. Conduzidos, amparados e protegidos pela fortaleza divina, os seus filhos não devem mostrar senão heroísmo em todo o exterior. Os objetos temerosos que ela lhes apresenta, não são nada. Se lhes acena com eles, não é senão para tornar-lhes mais bela a vida pelo exercício de ações mais gloriosas. Mete-os em embaraços de toda a espécie, nos quais a prudência da carne, não vendo a possibilidade de nenhuma saída, tem a sensação da sua completa fraqueza e se considera diminuída e confundida.
É então que a fortaleza divina aparece em todo o seu esplendor, libertando-os mais maravilhosamente do que os historiadores fabulosos ajudados por uma fecunda imaginação destrincham as intrigas e os perigos dos seus heróis imaginários, que terminam sempre por chegar com felicidade ao fim das suas aventuras. Com uma destreza muito mais admirável dirige-as mais felizmente por entre os perigos de morte, de monstros e infernais, de demônios e suas ciladas. Eleva estas almas até ao céu; e todas são objeto real destas histórias místicas, muito mais belas e mais encantadoras e curiosas do que todas quantas inventou a imaginação humana.
Coragem, pois, ó alma, conduzida e dirigida e sustentada pela mão segura, invisível, toda poderosa e infalível da divina Providência. Em paz e alegria caminhemos para a nossa meta, e de tudo o que se nos apresenta sirvamo-nos, como de objeto para as nossas vitórias. Para combater e para vencer é que nós marchamos e militamos debaixo das suas bandeiras. Exivit vincens ut vinceret. Quantos passos dermos sob esses auspícios, tantos serão os triunfos. O espírito de Deus segura na mão a pena e mantém aberto o livro onde se continua a escrever a história sagrada, que não está ainda concluída e cuja matéria se não esgotará até ao fim do mundo. Esta história não é senão a narração da ação e dos desígnios de Deus sobre os homens. De nós depende o figurar nesta história e continuar a sua trama pela união dos nossos sofrimentos e das nossas ações com a ação e a direção de Deus.
Não, não, tudo o que se nos apresenta, quer para realizar, quer para sofrer, não é para a nossa perdição. É a Providência que nos vai levando pela mão, para nos fornecer a matéria desta Escritura Sagrada que todos os dias se vai acrescentando.
 
CAPÍTULO IX
Despojando de tudo as almas que se lhe entregam sem reserva, Deus dá-lhes uma coisa que para elas tem o lugar de tudo, de luz, de sabedoria, de vida e de força: é o seu amor. Nestas almas, o amor divino é como um instinto sobrenatural. Cada coisa na natureza tem o que é conveniente à sua espécie: cada flor seu encanto, cada animal seu instinto, cada criatura sua perfeição. Assim também nos diversos estados da graça cada um tem sua graça específica, e há sua recompensa para cada um daqueles cuja boa vontade se conforma com o estado em que o colocou a Providência.
Uma alma lança-se na ação divina desde que no seu coração se encontra formada a boa vontade; e esta ação tem sobre ela mais ou menos influência, segundo se abandona mais ou menos. A arte do abandono não é senão a arte de amar. O amor divino concede tudo a quem lhe não recusa nada. E como ele é que inspira todos os desejos duma alma que só vive dele, não pode deixar de os ouvir: porventura pode o amor não querer aquilo que quer?
A ação divina não olha senão à boa vontade; não a atrai a capacidade das outras faculdades, como nem a incapacidade a afasta. Encontrando um coração bom, puro, reto, simples, submisso, filial e respeitoso, é quanto lhe basta. Apodera-se desse coração, toma posse de todas as suas faculdades, e dispõe tão admiravelmente todas as coisas para o seu maior bem, que em todas encontrará modo de se santificar. Se nela entra o que dá a morte às outras almas, o contraveneno da sua boa vontade não deixará de atalhar os seus efeitos. Se chegar à borda do precipício, a ação divina afastá-la-á; se aí a deixar, impedi-la-á de cair; e se caiu, retirá-la-á. Tudo bem considerado, as faltas destas almas são apenas faltas provenientes da fragilidade. O amor sabe tirar delas sempre vantagem. Por insinuações secretas, faz-lhes compreender o que têm a dizer ou a fazer, segundo as circunstâncias.
Recebem em si mesmas como que uns fulgores da inteligência divina: Intellectus bonus omnibus facientibus eum. Esta inteligência divina acompanha-as em todos os seus caminhos, tira-as de todos os maus passos nos quais porventura a sua simplicidade as fez entrar. E se talvez se lançaram em algum compromisso que lhes seja prejudicial, a Providência proporciona-lhes soluções felizes que tudo reparam. Por mais que contra ela se formem e se multipliquem as intrigas, a Providência desfaz todos os nós, confunde os seus autores, os quais, tomados dum espírito de vertigem, vêm a cair nas ciladas que eles mesmos prepararam. Conduzidas pela Providência, as almas às quais se destinavam essas ciladas, realizam, sem pensar nisso, certo número de coisas talvez inúteis na aparência, mas que servem para as libertar sem demora de todos os embaraços e dificuldades em que a sua retidão, aproveitada pela malícia dos inimigos, as tinha precipitado!
Oh! Como esta boa vontade é avisado procedimento! Quanta prudência não há na sua simplicidade, quanta destreza na sua inocência e na sua franqueza, quantos mistérios e segredos na sua retidão!
Vede o jovem Tobias. Não passa de uma criança; mas Rafael está ao seu lado. Com tal guia, caminha seguro; nada lhe mete medo e nada lhe falta. Os próprios monstros que lhe saem ao caminho, são os que lhe fornecem alimento e remédios; e ele não se ocupa senão de bodas e festins, pois esse é, na ordem da Providência, o seu objeto presente. Não é que não tenha outros negócios, mas todos estão confiados a essa inteligência encarregada de o assistir; e tão bem resolvidos se encontram, que nunca teve semelhante êxito, pois só vê prosperidades e bênçãos. Contudo a mãe chora, mergulhada na mais amarga tristeza; mas o pai está cheio de fé. E o filho tão amargamente chorado volta cheio de gozo e com toda a sua família entra a desfrutar da maior alegria.
O divino amor é, pois, para as almas que a ele se entregam em cheio, o princípio de todos os bens. E para adquirir este bem inestimável, basta desejá-lo verdadeiramente.
De fato, queridas almas, Deus não exige senão o vosso coração; se buscais este tesouro, este reino onde só Deus reine, encontrá-lo-eis. Se o vosso coração está completamente entregue a Deus, é desde logo esse tesouro, esse próprio reino que desejais e buscais. Desde que queremos a Deus e a sua vontade santíssima, gozamos de Deus e da sua vontade, e este gozo é proporcional ao nosso desejo. Amar a Deus é desejar sinceramente amá-lo; porque o amamos, queremos ser instrumentos da sua ação, para que o seu amor se exercite em nós e por meio de nós.
A ação divina não corresponde à destreza da alma simples e santa; mas à pureza da intenção, e não às medidas que se empregam ou aos projetos que se formam, nem aos modos que se excogitam ou aos meios que se escolhem. Em tudo isso a alma pode enganar-se, nem é raro que tal suceda; porém a sua retidão e a bondade da sua intenção, essas não a enganam nunca. Desde o momento que Deus encontra esta boa disposição, desconta-lhe todo o resto e considera como feito o que ela realizaria infalivelmente se vistas mais seguras secundassem a sua boa vontade.
A boa vontade nada tem, portanto, que temer; se cai, não pode cair senão debaixo da mão onipotente que lhe serve de guia e a ampara e a vai reconduzindo ao bom caminho, do qual porventura se desviou. Nela a alma encontra o remédio nas desordens em que a lança o esforço e a cegueira das faculdades que a desviam; faz-lhes sentir quanto deve desprezá-las, para não contar senão com ela e se abandonar totalmente à sua direcção infalível. Os erros em que caem as almas boas terminam, portanto, no abandono, e jamais um coração bom pode ser encontrado desprevenido, pois é dogma de fé que tudo coopera para o seu bem.
 
CAPÍTULO X
De que servem as ilustrações mais sublimes, e até as divinas revelações, quando não há amor à vontade de Deus? Foi assim que Lúcifer se perdeu; a ação divina, descobrindo-lhe o mistério da Encarnação, serviu só para fazer brotar nele sentimentos de inveja. Pelo contrário, uma alma simples e ilustrada unicamente pelas luzes da fé, não se pode cansar de admirar, louvar e amar a ordem de Deus; de o encontrar, não somente nas criaturas santas, mas ainda mesmo na confusão e desordem das mais desconcertadas. Um raio de fé pura ilumina mais uma alma santa, do que Lúcifer foi iluminado por suas próprias luzes, apesar de tão sublimes.
A ciência da alma fiel às próprias obrigações, tranquilamente submissa às ordens íntimas da graça, doce e humilde para todos, é de maior valor do que a mais profunda penetração dos mistérios. Se soubéssemos ver a ação divina em todo este orgulho e dureza da ação das criaturas, recebê-las-íamos sempre com doçura e respeito. As suas desordens não nos fariam deixar a ordem, por mais que nos fosse desagradável a sua maneira de proceder.
Deve-se ver nelas a ação divina que trazem consigo e comunicam, quando somos fiéis em praticar a doçura e a humildade. Não se há de olhar para o caminho que elas seguem, mas avançar sempre com firmeza no próprio caminho; deste modo, dobrando-os suavemente, é que se quebram os cedros e se derrubam as rochas.
Que há no mundo que seja capaz de resistir à força duma alma fiel, doce e humilde? Se queremos derrotar infalivelmente todos os nossos adversários, não devemos opor-lhes outra espécie de armas. Jesus Cristo entregou-no-las para nossa defesa; quem as sabe manejar, não tem nada que temer. É preciso não ser covarde, mas decidido, como convém a instrumentos divinos. Tudo quanto vem de Deus é maravilhoso e sublime; e jamais a ação que faz guerra a Deus poderá resistir a quem está unido à ação divina pela doçura e pela humildade.
O que é Lúcifer? Um belo espírito, o mais brilhante e esclarecido de todos os espíritos, mas um descontente de Deus e da ordem divina. O mistério da iniquidade não é senão a extensão deste descontentamento, manifestando-se de todas as maneiras possíveis. Lúcifer, enquanto dele depende, nada quereria deixar subsistir na ordem por Deus estabelecida. Em toda a parte onde Lúcifer se introduz, aparece logo desfigurada a obra de Deus. Quanto mais o homem é dotado de luzes, de ciência e de capacidade, tanto mais há que recear se lhe falta o fundamento da piedade, que consiste em viver na alegria de Deus e da sua santa vontade. É por um coração bem regulado que se dá a união à ação divina; sem ele, não temos senão a pura natureza que, infelizmente, de ordinário não é senão pura oposição à ordem de Deus. Este divino e onipotente artífice não reconhece como seus instrumentos senão os humildes; e os soberbos que se opõem condena-os a servirem como de vis escravos no cumprimento dos seus amorosos desígnios.
Quando vejo uma alma para quem o seu tudo é Deus e a submissão às ordens de Deus, ainda que seja desprovida de outros dotes e qualidades, não posso deixar de exclamar: Eis uma alma dotada de grandes talentos para servir a Deus. Isto era o que na Santíssima Virgem e em S. José aparecia ao exterior. O resto, sem esta disposição da alma, infunde-me grave preocupação e temor, fazendo-me recear a ação de Lúcifer. Por isso, mantendo-me numa prudente reserva, mais firmemente me apoio no meu fundo de simplicidade, para o opor a toda a essa sensibilidade espetaculosa, que bem considerada em si mesma, não é senão como vidro frágil.
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CAPÍTULO XI
A ordem de Deus é toda a prática da alma simples, que sabe reconhecê-lo e reverenciá-lo, nas arbitrariedades e caprichos com que o soberbo pretende tirar-lhe a paz. O soberbo despreza uma alma, que nele e em todas as suas ações não vê senão a Deus. Muitas vezes o soberbo pensa que a modéstia dessa alma é um sinal de assentimento, quando é apenas temor amoroso de Deus e da vontade divina que lhe é presente no soberbo.
Não, pobre insensato, a alma simples não tem medo de ti. Pelo contrário, tu despertas nela um sentimento de compaixão; é a Deus que ela responde, quando tu pensas que fala para ti; é com Deus que ela trata, e a ti não te olha senão como a um dos seus escravos, ou antes como a uma sombra sob a qual Deus se oculta. E por isso quanto mais alto é o tom em que falas, mais baixo ela te responde; e quando julgas tê-la apanhado de surpresa, afinal é ela que te surpreende a ti. As tuas atenções e as tuas violências não as considera senão como favores da Providência. O soberbo é um enigma que a alma simples, iluminada pela fé, resolve com a maior clareza.
Este hábito de encontrar a Deus em tudo o que vai sucedendo a cada momento em nós e ao redor de nós, é a verdadeira ciência das coisas; é uma revelação contínua da verdade; é uma comunicação com Deus, renovada incessantemente; é o gozo do Esposo, não às escondidas, às ocultas, na cela e na vinha, mas a descoberto e em público, sem temor de criatura alguma. É um fundo de paz, de amor e de alegria em Deus, vivendo e operando sempre o mais perfeito, em tudo o que se apresenta. É o paraíso eterno, que em verdade não é presentemente senão conhecido e saboreado em coisas informes e envolvidas de trevas; mas o Espírito de Deus, que nesta vida vai dispondo todos os elementos desse paraíso por meio desta continuada e fecunda presença da sua ação, dirá no dia da morte: Faça-se a luz - Fiat lux: e então veremos claramente os tesouros encerrados nesse abismo de paz e de contentamento de Deus, que os olhos da fé sabiam descobrir de contínuo, em cada ação e em cada sofrimento.
Quando Deus se dá assim, as coisas mais comuns tornam-se extraordinárias, apesar de não o parecerem. É que este caminho é já, por si mesmo, extraordinário; e por conseguinte não precisa ser adornado de maravilhas que lhe não são próprias. É um milagre, uma revelação, um gozo continuado, com pequenas interrupções; mas em si mesmo, o seu caráter é não ter nada de sensível nem de maravilhoso, mas tornar maravilhosas todas as coisas comuns e sensíveis.
 
CAPÍTULO XII
Se neste mundo a ação divina se esconde sob exteriores de fraqueza e debilidade, é para aumentar o mérito das almas que lhe são fiéis; mas o seu triunfo nem por isso deixa de estar menos assegurado. A história do universo não é senão a história da luta que as potências do mundo e do inferno movem, desde o princípio, às almas humildemente consagradas à ação divina. Nesta luta, as vantagens parecem estar todas do lado do orgulho; mas a humildade é que finalmente sai sempre vitoriosa.
A figura do mundo é-nos representada sob a forma duma estátua de ouro, de bronze, de ferro ou de barro. Este mistério de iniquidade, mostrado em sonhos a Nabucodonosor, não é senão um conjunto confuso de todas as ações interiores e exteriores dos filhos das trevas. Estes são ainda figurados pela besta irrompendo do abismo desde o alvorecer dos séculos, para guerrear o homem interior e espiritual; os acontecimentos dos nossos dias são apenas a continuação dessa guerra. Os monstros vão-se sucedendo uns após outros; o abismo devora-os e devolve-os incessantemente, em novas e cada vez mais ferozes arremetidas.
O combate, iniciado no céu entre Lúcifer e S. Miguel, dura ainda. O coração desse anjo soberbo e invejoso tornou-se um abismo inesgotável de toda a sorte de males. Ateia a revolta dos anjos uns contra os outros no céu, e desde a criação do mundo, o seu esforço consiste em suscitar de contínuo, entre os homens, novos celerados que vão tomando o lugar daqueles que o abismo devorou. Lúcifer é o chefe dos que recusam obediência ao Onipotente; este mistério de iniquidade não é senão a inversão ou antes a subversão da ordem de Deus. É a ordem ou mais exatamente, a desordem do demônio. Tal desordem é um mistério, pois esconde sob aparências belas, infinitos e irremediáveis males.
Desde Caim até aos que hoje assolam o universo, todos os ímpios que declararam guerra a Deus foram, na aparência, grandes e poderosos do mundo, que levantaram grande ruído e a quem os homens adoraram. Mas esta pomposa aparência é ainda um mistério. São bestas que do abismo subiram umas após outras, para derrubar a ordem de Deus; mas esta ordem, que é outro mistério, opôs-lhes sempre homens verdadeiramente grandes e poderosos, que desferiram o golpe mortal a esses monstros. E à medida que outros foram vomitados pelo inferno, o céu fez nascer também novos heróis para lhes dar batalha. A história antiga, sagrada e profana, é a história destes combates.
A ordem de Deus ficou para sempre vitoriosa; os seus herois são felizes por toda a eternidade. A injustiça jamais pôde proteger os desertores; pagou-lhes com a morte e morte eterna.
O ímpio, no paroxismo da sua loucura, julga-se sempre invencível. Ó meu Deus! Que meio haverá de vos resistir? Quando uma só alma tivesse o inferno e o mundo contra ela, nada teria a temer encontrando-se no partido do abandono à ordem de Deus. Essa exibição monstruosa da impiedade, armada de tamanho poder, essa cabeça de ouro, esse corpo de prata, de bronze e de ferro, tudo isso não passa de um fantasma de poeira deslumbrante. Basta uma pedra para o fazer joguete dos ventos.
Como é admirável o Espírito Santo em representar a todos os séculos! Tantas revoluções surpreendendo dolorosamente a humanidade; tantos herois, aureolados de brilho deslumbrante, rolando como astros de fulgor sem igual pelo céu da história; tantos acontecimentos extraordinários; tudo isso não passa de um sonho que Nabucodonosor, ao despertar, vê desaparecer da sua memória, deixando-lhe gravadas no espírito as mais profundas impressões.
Todos esses monstros aparecem ao mundo unicamente para excitar a coragem dos filhos de Deus; e quando estes já estão bastante exercitados, Deus concede-lhes a glória de matar o monstro, e chama novos atletas para o campo da batalha. E assim esta vida é um contínuo espectáculo, que dá alegria ao céu, anima ao combate os santos da terra e lança a confusão nas hostes do inferno.
Deste modo, tudo o que se opõe à ordem de Deus não serve senão para a tornar mais adorável. Os servidores da iniquidade tornam-se escravos da justiça, e a ação divina edifica a Jerusalém celeste com as ruínas de Babilônia.
ATO DE ABANDONO: Ó meu Deus, eu não sei o que hoje me há de suceder; ignoro-o por completo; mas sei certamente que nada poderá acontecer-me que Vós não tenhais previsto, regulado e ordenado de toda a eternidade: e isto me basta.
Adoro os vossos desígnios impenetráveis e eternos e a eles me submeto de todo o coração. Quero tudo, aceito tudo e uno o meu sacrifício ao de Jesus Cristo, meu divino Salvador. Peço-Vos, em seu nome e pelos seus merecimentos infinitos, paciência nas minhas penas e submissão perfeita e inteira a tudo o que me suceder segundo o vosso divino beneplácito.
Assim seja.